Uma das maiores referências na preservação dos direitos indígenas, o sertanista e indigenista José Carlos Meirelles concedeu entrevista ao programa “Suas Histórias, Nossa Identidade”, da TV Aldeia, nesta quarta feira, 19. Na semana em que se comemora o Dia do Índio, o especialista trouxe sua experiência em um bate-papo no qual falou da história, das conquistas e do que a sociedade ainda precisa aprender com esses povos. Confira parte da conversa:
1 – Em que ano o senhor chegou ao Acre e iniciou essa relação com o estado?
Entrei na Funai em 1970. Fui trabalhar no Maranhão com os índios Urubucapó até 1973. Foi quando um grupo de índios isolados fez contato, os Auáguajó, e eu fiquei lá até 1976. Naquele ano fui convidado. A Funai iria abrir aqui no Acre por um amigo, que já é falecido, e vim para o Acre.
Antes de trabalhar com índio, eu fazia Engenharia Mecânica, mas parei no terceiro ano e enveredei para essa história de índio.
O Acre começou em 1976 na minha vida, quando a Funai abriu.
2 – Quando, de fato, o senhor teve o primeiro contato com índios aqui no Acre?
Logo que eu cheguei aqui, apesar de alguns estudos anteriores, o Txai Terri Aquino já estava estudando os Kaxinawa. Nós começamos um processo de descobrir primeiro onde os índios do Acre estavam. Inicialmente, fiz uma viagem para a estrada de Porto Velho, atrás de uns Cachararí. Fui até a aldeia deles e depois saí e fui para o Rio Iaco, onde é terra indígena, hoje, Mamuadati dos Jaminawa, Manchineri, ajudei no início da organização desses dois povos, depois na demarcação daquelas terras. E quando chega 1987 para 88, as pessoas que já tinham trabalhado ou trabalhavam com povos isolados se reuniram em Brasília, capitaneadas pelo Cid Possuelo, e fomos fazer uma avaliação do que era realmente esse trabalho de fazer contato com índio. Até essa época, o Estado brasileiro só reconhecia o índio, quando ele conhecia o índio. Índio Isolado não era nem índio, ainda porque o Estado não tinha relação com ele. Então a política era fazer contato. Só que essa política não deu muito certo.
A gente fez um levantamento de uns contatos oficiais, desde o tempo de Rondon e do SPI, e vimos que de acordo com a estatística, após o primeiro ano de contato, dois terços da população contactada estava morta, ou seja, isso não é contato é genocídio. Então, criamos uma nova política que se chama política de proteção dos povos isolados. Ou seja, você descobre onde o isolado mora, protege o território deles e deixa o contato ao livre arbítrio deles. Se ele quiser fazer contato, que faça, mas ninguém vai sair no mato botando presente, espelhinho, aviãozinho de plástico pra índio.
Então houve uma mudança na política em relação a esses povos. E eu fui convidado a abrir uma frente, naquele tempo falavam que era frente de atração, depois passou pra frente de contato e depois mudou para um nome mais politicamente correto que são as frentes de proteção etno ambientais. Eu fui lá pro rio Envira, em 1988, e passei 22 anos lá protegendo aquele território que li naquela região, especificamente, tem quatro povos isolados, um dos quais fez contato agora em junho de 2014, mas ainda restam três povos isolados e o pessoal da Funai está cuidando dos recém contatados e da área deles. Rapidamente, foi esse o meu percurso aqui no Acre.
3 – No que conseguimos avançar na preparação para o contato com esses indígenas?
Depois dessa política houve poucos contatos, mas bem insignificativos. O contato em sí, não é o problema. O problema é o pós-contato, o dia seguinte. É doença, é mudança cultural rápida, então é preciso equipe preparada para dar sentido a esse contato e fazer com que os índios fiquem vivos. È uma experiência que está sendo desenvolvida e tem dado certo.
4 – Como foi para o senhor ter esse contato com eles?
Pra chegar nesse contato, é preciso voltar um pouco na história. Em 2011, houve uma invasão dos traficantes peruanos na base da frente Envira e o pessoal da Funai, que estava lá, abandonou a base e assim ficou até 2014. Como não ficou ninguém na base, os índios que viviam andando lá por perto da base, começaram a andar perto da aldeia Ashaninka que se chama Simpatia. Os Ashaninkas ficaram apavorados, sabiam que outros índios estavam lá por perto e ligaram para Funai e o chefe da frente, que era o Guilherme, me falou que tinha uns índios do Envira que queriam fazer contato e disse pra irmos lá. Eu disse que desconfiava que era um povo que deveria falar uma língua parecida com as do Jaminawa e pedi para levarmos um intérprete. Aí combinamos com Júlio Jaminawa pra ir com a gente. Só que no dia anterior da viagem a mulher do Júlio adoece. E nós fomos sem intérprete. É por isso que aquelas cenas que tem do primeiro contato, parece um teatro do absurdo por que ninguém se entendia. O fato é que chegamos e os índios não estavam mais lá e eu disse ao Guilherme para irmos à base e ver como ficou depois do abandono. Quando nós chegamos lá, os índios estavam tirando limão aí caíram n’água e foram para o outro lado.
Então, na verdade, o primeiro contato não foi na aldeia Simpatia, foi lá na base. Como ninguém conseguia se entender resolvemos ir embora, mas deixamos os peixes que tínhamos pescado. Eu mostrei dois curimatãs e levantei pra que eles vissem e eles gritaram o nome do peixe na língua deles, que era parecida com a Jaminawa. Falei para o Guilherme chamar um Jaminawa que o povo falava a língua parecida. Voltamos pra aldeia Simpatia e dois dias depois os índios chegaram lá e foi aquela cena que todo mundo conhece, aquela loucura que ninguém se entendia.
Quatro dia após chegou o Zé Correia Jaminawa e a conversa foi outra. Quando os índios vieram, foram lá na frente do rio e abriram a boca, pronto, houve a comunicação. Saíram dali, sentaram em uma escola que tem lá no Simpatia, quatro índios, começaram a conversar com o Almir e o Zé Correia às nove da manhã, terminaram as nove da noite. Conversaram bem pouco. Aí a coisa entrou nos eixos.
Nós chamamos o doutor Douglas Rodrigues, um médico que trabalhou com o doutor Barouse, no Xingu, o médico que mais entende de saúde de índios isolados. Os índios adoeceram, claro. A base foi reaberta, o Douglas foi pra lá, tratou todo mundo por que eles queriam ir buscar o resto do pessoal, mas o período de incubação da gripe é de uma semana, oito dias, foi uma luta para o Zé Correia convencê-los de que não podiam chamar os outros por estarem doentes. Depois que melhoraram o resto do pessoal foi chegando. Foi mais ou menos assim.
5 – Que paralelo o senhor faz entre nós, que quando descobrimos uma tecnologia que melhora nossa vida não queremos voltar atrás, e o índio isolado? O que vai ocorrendo com eles quando vão descobrindo coisas, digamos, do “nosso mundo”?
A tecnologia, teoricamente, existe para facilitar a vida da gente. É claro que existem algumas que complicam. Os índios não são diferentes. Todo índio isolado, aqui no Acre, já tem machado, tem terçado, tem panela, que ele consegue saqueando no entorno. Isso não é de hoje. Só pra se ter uma ideia do que é a tecnologia, tem uns relatos do Manoel Urbano da Encarnação, que foi a primeira pessoa que subiu o rio Purus e chegou até a boca do Iaco em Sena Madureira, que encontrou uns Manchineri, isso por volta de 1880, se comunicou com eles e os Manchineri já tinham instrumento de ferro trazido por peruanos. Então a tecnologia é irreversível. Eu estou mudando um pouco a minha concepção de 1988. A gente é que queria que os índios continuassem isolados eternamente, mas isso é a gente!
Alguém perguntou pro isolado se ele quer continuar isolado? Isso é uma decisão dele. Ah, mas vai modificar a cultura. É óbvio que vai. Quando duas culturas se encontram elas se modificam, é uma troca. Isso é inevitável, é um processo e não adianta a gente querer botar uma redoma de vidro nos índios.
Porque os índios estão fazendo contato? Eu vejo varias coisas. primeiro, a diminuição no território (invasão, madeireiro, cocaleiro), vai diminuindo o território e de repente começam a matar a tua família, uma hora ele sai. Se você for perguntar para todo grupo isolado que faz contato espontaneamente, por que nós vamos fazer contato com a gente, a resposta é sempre a mesma: nós viemos aqui civilizar vocês, vocês são muito brabos e matam a gente sem motivo e isso é uma verdade. Perde-se alguma coisa cultural? Perde-se, se troca, se muda, mas cultura não é uma coisa estática. Cultura é uma coisa dinâmica.
Então não adianta a gente querer que os índios voltem à época que Cabral chegou a Porto Seguro. Essa é minha opinião sobre esse assunto.
6 – A gente se sente bastante evoluído por morar no meio da sociedade. O que temos a aprender com os índios isolados?
Acho que uma das diferenças é a tecnologia que nós temos. Tem algumas coisas em que eles são mais evoluídos que a gente, pelo menos dentro do próprio grupo. Se um deles estiver comendo uma banana e você passar, ele te chama e oferece. Comida não tem dono. Não existe propriedade de comida, de terra. Ou seja, na parte humana, a gente podia aprender muita coisa com eles.
Confira AQUI a segunda parte da entrevista.