Hosmac: um lugar para tratar as doenças da alma

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), mais de 400 milhões de pessoas são afetadas por transtornos mentais e comportamentais em todo mundo. O número alarmante também se repete no Brasil, onde 23 milhões de pessoas (12% da população) necessitam de algum atendimento em saúde mental e pelo menos cinco milhões de brasileiros (3% da população) sofrem com transtornos mentais graves e persistentes. No Acre, a maior referência para o tratamento desse tipo de doença é o Hospital de Saúde Mental do Acre (Hosmac), um lugar com o desafio diário de reinserir pessoas na sociedade, lutar contra o preconceito e tratar esse que é considerado o grande mal do século XXI.

Há mais de duas décadas o Hosmac é a maior referência em saúde mental do Acre (Foto: Angela Peres/Secom)

Há mais de duas décadas o Hosmac é a maior referência em saúde mental do Acre (Foto: Angela Peres/Secom)

Mas, afinal, o que são os transtornos mentais? A própria OMS entende que são as condições caracterizadas por alterações mórbidas do modo de pensar e/ou do humor (emoções), e/ou por alterações mórbidas do comportamento associadas à angústia expressiva, deterioração do funcionamento da mente. O transtorno mental é sim uma doença patológica, que pode tirar a pessoa da escala do que é considerado “normal”.

{xtypo_quote_right}As pessoas às vezes não entendem. Na maioria das doenças você tem uma dor física, em algum lugar do corpo, que seja no braço, na barriga, num osso. Essa não é uma doença da alma mesmo

Edna Cardoso{/xtypo_quote_right}

“As pessoas às vezes não entendem. Na maioria das doenças você tem uma dor física, em algum lugar do corpo, que seja no braço, na barriga, num osso. Essa não, é uma doença da alma mesmo”, explica Edna Cardoso, 58, que há quase duas décadas recebe acompanhamento psicológico. Os problemas de saúde mental ocupam cinco posições no ranking das dez principais causas de incapacidade, de acordo com a OMS, e respondem pela terceira causa de afastamento do trabalho no Brasil, de acordo com levantamentos realizados pela Previdência Social desde 2008.

Desde 2009, os investimentos do governo federal têm passado da casa do R$ 1,4 bilhão. A demanda só tende a crescer e o Hosmac, que existe há mais de duas décadas, esforça-se para manter suas ações e ajudar pessoas que não só necessitam lutar contra essa condição, mas lidar com o preconceito e a falta de compreensão da sociedade.

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Com começo, sem fim

O Hosmac tem realizado mais de 2.300 atendimentos mensais. Só no mês de julho, desses casos, 367 foram de urgência e emergência. Hoje o Hosmac conta com 13 médicos, psiquiatras e clínico geral. O hospital também possui especialistas de psicologia, serviço social, terapia ocupacional, educação física, dentista, duas enfermeiras e quatro técnicos de enfermagem

Ainda assim, para ser atendido pelo Hosmac é necessário que o paciente seja encaminhado pelas unidades de atenção básica ou outros hospitais. Dependendo da gravidade, o atendimento pode até acontecer no dia, mas no geral são marcadas consultas com espera de 30 a 60 dias. “Cada caso é um caso. Somos nós que avaliamos. Até porque, pacientes psiquiátricos não têm alta”, explica Marcos Araripe, diretor do Hosmac.

{xtypo_quote_left}Não dá pra distinguir quem tem um transtorno ou não, todos nós somos iguais

Fabiano de Carvalho{/xtypo_quote_left}

Os principais casos atendidos no hospital são de transtornos de ansiedade, como depressão, síndrome do pânico, a ansiedade em si e transtorno obsessivo compulsivo (TOC). Casos mais graves incluem bipolaridade e esquizofrenia, principais motivos dos casos de internação.

Entre os males, o mais comum é a depressão, considerada uma das doenças mais preocupantes da modernidade e que tem atingido cada vez mais pessoas. Segundo a OMS, o Brasil é o país com o maior número de depressivos no mundo, com 10,8% da população apresentando o distúrbio mental no último ano. A doença também é mais comum entre as mulheres, na proporção de três para cada homem. Gente como a dona de casa Leuscilene Mendes, que luta para se livrar da doença que tanto a aflige.

Leucislene luta há mais de um ano contra a depressão (Foto: Angela Peres/Secom)

Leucislene luta há mais de um ano contra a depressão (Foto: Angela Peres/Secom)

Leucislene tinha uma vida agitada. Trabalhava e estava começando um curso universitário, levando a vida com o marido e uma filha. Mas, após sofrer um grave acidente de carro há dois anos, ficou imobilizada e não resistiu a uma mudança tão drástica na vida, junto a um tratamento difícil.  “Eu ficava só chorando e triste pelos cantos. Quando a gente tem uma vida e para, tudo fica difícil. Passei seis meses sem andar, larguei a faculdade e o trabalho”. Quando voltou a andar, voltou também para o trabalho, mas tinha esquecimentos, acessos de raiva, pesadelos. Foi então que começou a realizar o tratamento psicológico.

“Tudo começou a melhorar. Mas eu tinha medo de as pessoas acharem que eu era louca”, conta Leucislene. Mas foi então que uma gravidez e a perda do bebê, junto com a instabilidade no trabalho, pioraram novamente a situação. “O meu psicológico ficou muito abalado e foi necessário voltar pro tratamento no Hosmac”, lembra. Hoje ela se sente bem melhor e procura se equilibrar com o acompanhamento e terapias. “Às vezes rola uma tristeza, dá vontade de quebrar as coisas, mas eu me controlo. E eu tenho uma filha pra cuidar, não posso me esquecer disso. Hoje eu tô reencontrando um sentindo na minha vida”.

Por trás dos muros

{xtypo_quote}Quando ela tá aqui [no Hosmac] durmo melhor. Eu mesma já comecei a tomar remédios pra dormir. Meus outros filhos ajudam, mas eles têm a vida deles. Tudo que lutei e vou continuar lutando é pra tirar ela das drogas

Maria de Lima{/xtypo_quote}

Quando ainda era chamado de Distrital, nos anos 90, o Hosmac era um lugar mistificado, que a sociedade considerava cercado de mistério, com seus pacientes tão diferentes e que causavam até medo pelo desconhecido. Hoje, 20 anos depois, as coisas caminham de um jeito diferente. Por trás dos muros encontramos um mundo onde profissionais tentam, a todo custo, criar um ambiente para que os pacientes internados sintam uma real melhora e possam voltar a viver em comunidade.

Atualmente o Hosmac conta com nove internações compulsórias – determinadas pela Justiça – além de 12 pacientes residentes – pessoas que moram lá – geralmente abandonados pela família, sem expectativa de deixar o hospital. Na internação de curta residência, que não ultrapassa mais de 15 dias, há 32 internos na ala masculina e 23 na feminina.

Dentro das alas de internação do Hosmac encontramos a paciente Amera Oliveira, acompanhada da mãe, Maria de Lima, cozinheira do próprio Hosmac há 24 anos. Maria conta que essa não é a primeira internação de Amera, que se tornou uma paciente recorrente do hospital. “Amera demonstrou ser diferente desde criança, mas percebemos mesmo quando ela tinha 13 anos. Eu achava que era besteira, mas não era. A escola chamou a gente e pediu pra levar ela no psicólogo. Aí ela foi por três meses e diagnosticaram transtorno bipolar”, lembra Maria.

{xtypo_quote}Hoje foi constatado que os serviços de bases comunitárias são mais eficazes que os hospitais psiquiátricos no tratamento dessas pessoas{/xtypo_quote}

A bipolaridade é uma doença conhecida por reunir sintomas como euforia, fala rápida, irritação, agitação, insônia, agressividade, hostilidade e depressão numa mesma pessoa, atingindo 4% da população brasileira desde 2010, segundo o IBGE. Uma doença sem cura, mas com tratamento e controle. Amera começou o tratamento e se sentiu muito melhor, mas o envolvimento com drogas potencializou sua bipolaridade e a família não era mais capaz de lidar com o problema sem ajuda.

“Quando ela tá aqui durmo melhor. Eu mesma já comecei a tomar remédios pra dormir. Meus outros filhos ajudam, mas eles têm a vida deles. Tudo que lutei e vou continuar lutando é pra tirar ela das drogas”, desabafa Maria. A filha Amara, já há alguns dias no hospital, conta que se alimenta e dorme bem, recuperou peso e “eu não sou doida, eu sou normal. Eu não rasgo dinheiro. Sou mais esperta que vocês, se duvidar. Eu sei tudo que vocês estão fazendo”.

A mãe de Alexander sempre o reencontra nas quintas e domingos, dias de visita no Hosmac (Foto: Angela Peres/Secom)

A mãe de Alexander sempre o reencontra nas quintas e domingos, dias de visita no Hosmac (Foto: Angela Peres/Secom)

Já na ala masculina encontramos Alexander Rocha, 21 anos. Também diagnosticado com transtorno bipolar, a mãe de Alexander, Maria Rocha, conta sua história: “Desde criança tinha horas que ele ficava muito quieto, outras horas ficava animado demais. Aos seis anos os professores me chamaram e disseram que ele se comportava muito diferente, que era elétrico, fazia caras e bocas, gaguejava muito. Então ele passou a frequentar a fonoaudióloga e o psicólogo”, explica.

Com as drogas, as coisas pioraram muito. Maria relata : “Foi horrível. Perdi as contas de quantas vezes vim aqui no Hosmac. Ele só não é agressivo, mas foi só desconforto, tristeza”. Em internação compulsória determinada por seis meses, Alexander reflete um pouco sobre a vida. Cabisbaixo, ele revela que o sonho é ser pastor de igreja, ou advogado. “Eu tinha problemas de ficar perto das pessoas, a droga tirava a covardia, mas no final a covardia ‘tava’ maior. Quero voltar a estudar. Aqui eu faço muita coisa como assistir o cinema, vôlei. Mas eu quero sair”.

Além dos muros

Mas o tratamento não se limita aos muros do Hosmac. “A pessoa, quando está presa, a coisa que ela mais quer é sair. E aí tivemos a ideia de que a oficina Arte de Ser fosse fora do Hosmac”, conta Fabiano de Carvalho, psicólogo e coordenador da oficina de pintura e desenho que existe desde 2006 e que a partir de 2009 ocupa a biblioteca do Centro Comunitário da Sobral. “No começo havia 3, 4 pessoas. Foi crescendo, crescendo, conseguimos tintas, doações e começamos a chamar a comunidade também para fazer parte e quebrar o preconceito, mostrar que pessoas com distúrbio mental são pacíficas como quaisquer outras”, ressalta Fabiano.

Existe um clima de tranquilidade e amizade na oficina do Arte de Ser (Foto: Angela Peres/Secom)

Existe um clima de tranquilidade e amizade na oficina do Arte de Ser (Foto: Angela Peres/Secom)

Hoje cerca de 20 pessoas fazem parte da oficina por sessão, que sempre ocorre nas tardes de quarta-feira, reunindo comunidade da Baixada do Sol, internados do Hosmac e pessoas que realizam acompanhamento psicológico. Fabiano até brinca: “Não dá pra distinguir quem tem um transtorno ou não, todos nós somos iguais”.

O clima é de amizade e companheirismo. Os mais velhos costumam sentar juntos para falar de política e tocar músicas no violão. Os mais novos gostam de comparar suas pinturas. Uma cota é feita no final da oficina para comprar um lanche e todos falam sobre o que produziram, sobre que sentimento eles tiveram ao pintar aquilo, o que representa. Entre os artistas/pacientes, falamos com Edna Cardoso, 58, que pinta telas lindas e complexas num estilo próprio. “A primeira vez na oficina eu vim como um gato puxado no asfalto pela minha filha”, revela Edna, que agora admite não perder nenhum dia.

Edna realiza acompanhamento no Hosmac há oito meses, mas fez outros ao longo da vida por mais de duas décadas. “O negócio da depressão começa devagar, com os problemas da vida, tem hora que você chega no limite e aí cai”, diz ela, em sua definição pessoal do mal. Edna relata dramas pessoais que a fizeram chegar nesses limites ao longo da vida, desde os problemas conjugais, a perda de um filho e o drama de outro, que sofreu com um tumor no cérebro, conseguiu vencer, mas era como se tivesse voltado a ser uma criança, com necessidade de cuidados. “Eu caí, eu fui pro fundo do poço, mas não podia mostrar dessa vez, eu tinha que ser forte, por ele, por mim”.

“O tratamento para uma doença psicológica é uma melhora a cada dia, você não pode parar. As pessoas às vezes não entendem”, Edna Cardoso (Foto: Angela Peres/Secom)

“O tratamento para uma doença psicológica é uma melhora a cada dia, você não pode parar. As pessoas às vezes não entendem”, Edna Cardoso (Foto: Angela Peres/Secom)

Com o filho no Rio de Janeiro totalmente recuperado depois de um tempo, Edna voltou para o Acre e teve que lidar com os problemas de saúde do marido e a morte do pai, que lhe fez cair essa última vez. “O tratamento para uma doença psicológica é uma melhora a cada dia, você não pode parar. As pessoas às vezes não entendem”, conta.

{xtypo_quote_right}Aqui é diferente de lá fora, mas o tratamento é de pessoa para pessoa, não de profissional para paciente. Você poder ler uma pilha de livros de psicologia, mas o que você aprende aqui é pra vida

Danna França{/xtypo_quote_right}

Da mesma maneira concorda a amiga de Edna, Maria Lima. A senhora gosta de fazer desenhos usando palavras, estilizando versículos bíblicos. “No meu bairro me chamavam de louca. Saíam correndo de mim. Eu não sou louca, só tomo alguns remédios. E não gosto de ficar sozinha, gosto de conversar. Eu adoro a oficina porque tem amigos aqui”, revela Maria.

O espaço para a oficina do Arte de Ser está pequeno hoje.  Também há a ideia de reproduzir muitas das pinturas em camisetas e vender, uma maneira de angariar fundos para a oficina, que vive de doações. Aos longos dos anos montou-se um verdadeiro arsenal de obras de arte na biblioteca do Centro. Em algumas pinturas, muito talento é apresentado.

De pessoas para pessoas

Nos dias de visita do Hosmac, quintas e domingos, muita gente não recebe visitas. A equipe do hospital realiza atividades para entretê-los um pouco e brincarem, como um bingo. As responsáveis pelas atividades lúdicas criam um clima de diversão. Eles riem, brincam, ficam animados pra receber os prêmios, geralmente chocolates. Também há atividades como cuidar de uma horta, sessões de cinema e até desfiles de moda. Festas são realizadas sempre nas datas importantes e o Arraial do Hosmac é bastante popular.

A uma série de atividades lúdicas e recreativas para os internados e moradores do Hosmac (Foto: Angela Peres/Secom)

A uma série de atividades lúdicas e recreativas para os internados e moradores do Hosmac (Foto: Angela Peres/Secom)

“A gente procura dar o máximo de oportunidades pra eles”, conta a terapeuta ocupacional Ângela Galo. Há quatro anos trabalhando no Hosmac, Ângela diz que o trabalho não é como outro qualquer: “Quando a gente entra aqui é bem difícil. A gente não sabe o que vai encontrar. No começo foi triste, mas hoje eu me sinto muito bem vindo pra cá. Nós os vemos como pessoas, não alguém diferente por ter um transtorno mental. Nos apegamos”.

Já a professora Diana Goulart explica que “o professor tem que gostar de sala de aula e o professor de educação especial mais ainda. Nós temos que fazer eles se sentirem acolhidos. Quando um paciente entra aqui, ele já está em crise”. Diana já havia trabalho em casas terapêuticas no Paraná e para ela a transição foi mais simples, mas ressalva: “A gente não consegue fazer nada sozinho, todo mundo se ajuda”.

As brincadeiras e atividades geralmente são acompanhadas pela psicóloga Danna França. Em sua última semana no Hosmac – ela passou em outro concurso público – Danna conta que relacionamento entre pacientes e profissionais transcende a barreira do impessoal, causa emoção, marca. “Mais do que profissionalmente, a gente leva pra vida. Aqui é diferente de lá fora, mas o tratamento é de pessoa para pessoa, não de profissional para paciente. Você poder ler uma pilha de livros de psicologia, mas o que você aprende aqui é pra vida”, avalia.

Um novo caminho

{xtypo_rounded2}CAPS ad III – Rio Branco – Manoel Julião. Específico para atendimento a pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas. Responsável: psicóloga Sheila Garcia

CAPS II – Cruzeiro do Sul. Para atendimento de pessoas com transtornos mentais e pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas. Responsável: Paulo Roberto.{/xtypo_rounded2}

Sancionada em 2001, a lei 10216, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, pretende uma revolução no tratamento de transtornos mentais, crack, álcool e outras drogas através da Rede de Atenção Psicossocial. Esse novo modelo até mesmo pretende que os hospitais de saúde mental deixem de ser a referência para os tratamentos. “Os serviços de base comunitária são mais eficazes no cuidado com as pessoas com transtornos mentais, na medida em que garante a livre circulação das pessoas com transtornos mentais pelos serviços, comunidade e cidade”, explica a coordenadora de saúde mental do Acre, Ana Cristina Messias.

A nova política considera que internações podem ser feitas em leitos de hospitais gerais e que acompanhamentos devem acontecer através dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Hoje existem dois Caps, uma em Rio Branco e outra em Cruzeiro do Sul. A ideia é que um dia, cada município tenha seu Centro. O que falta instalar no Acre é o Serviço Residencial Terapêutico, um espaço previsto na Rede que servirá de moradia para os pacientes com transtornos mentais que não tem onde morar. Segundo Ana Cristina, “Esses lugares não serão apenas a residência dessas pessoas, mas um lugar que onde terão os cuidados de saúde, mas também poderão trabalhar, estudar, tentará reinseri-las na sociedade, que possam se relacionar, sair, voltar, tenham mais liberdades de ir e vir”.

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