Dedico este texto a Valdirene Diogo de Oliveira. Com amor e a inocência dos nossos melhores instantes infantis. Voa passarinha! (13 de março de 1968 – 10 de janeiro de 2021)
Recebi com surpresa uma carta anônima com poucas letras que enchiam a página inteira. A emoção ultrapassou meus lábios como a embriaguez que é maior do que o líquido ingerido. De súbito veio à mente a imagem de um professor barbudo de matemática do colegial, não pelo fato de compor palavras grudadas ao verbo, mas pela veemência quase inocente da carta. A grafia era sóbria, no entanto fria ao ponto de ferir meus olhos. Soltei a folha devagar numa leve taquicardia.
Na aula, mal riscava uma reta bruta no quadro e já começava a falar coisas antigas do tempo da Babilônia, do método euclidiano, teorema de Pitágoras, mecânica newtoniana e outras coisas da geometria espacial que todos achavam bonito, porém ninguém entendia. Para ele os números eram o grande milagre do universo. Em qualquer situação, bastava fazer vir à mente um número e pronto, os campos se abriam: meridianos, mórficos, cármicos, cósmicos – os campos era o infinito ∞ e a vida uma probabilidade. Era um mestre que ensinava criar e não copiar; questionar ante obedecer; refletir ao invés de dar opinião. Alertava: tudo nos é dado através dos sentidos desmesurados, da matéria invisível que se conhece antes mesmo de aprender. Pobre criatura, bendito, ensinava coisas que só se aprende só e no escuro, depois da dúvida violenta.
Me dei conta, depois de 30 anos, do estorvo das fórmulas racionais aprisionadas no ensino da palmatória que o professor procurava libertar. Era uma revolução mansa, incompreendida, uma loucura no campo das ideias sem que pensássemos em bombas e canhões destruindo os muros das escolas. Quando teremos um ensino que nos permita pensar e nos colocar com força e clareza diante da vida? Quando nos ensinarão que a vida é pouca para viver uma vida e que tragicamente cedo ou tarde se morre? O que sou e quem somos nós? Ele costumava fazer essas perguntas ilógicas nas aulas de álgebra para explicar conjugação. Depois de expor as teorias e os métodos inteligentes de observar o abstrato, nos entregava uma folha de papel dobrada e com os olhos grandes víamos a imagem de um céu negro enfeitado de corpos celestiais. A ignorância limita a vida e mata, pensava com medo depois da aula com pressa e raiva.
O professor morreu fatalmente cedo logo depois dos delírios, traços do destino imutável de homens solitários e vãos. Na classe, sem nenhum senso de superioridade, versava estonteante na ponta dos pés sobre uma ética protestante e o espírito do capitalismo, o espírito das leis, a república e um tal príncipe diferente do menino que cultivava uma flor. Misturava as equações com a revolução dos bichos, o cavaleiro errante, os gênios suicidas, acumulação primitiva, as invasões bárbaras, a colonização do novo mundo, a escravidão dos ancestrais, a arte da guerra e dava aleluia ao cântico dos cânticos.
O mistério dos símbolos me fascinava. A lógica traspassa a razão e atinge a linha ilusória dos deuses, antigas religiões e livros proibidos. Desconfiava que o professor procurava Deus no lugar errado. Naquela época eu não sabia o que se passava fora da caverna e todas as minhas respostas à vida eram bíblicas, reduzidas a alguns versículos egoístas sem sequer imaginar que literatura também é evangelho e que a bíblia é uma sagrada obra de arte. E se tudo que o professor dissera fosse mesmo verdade, para onde a humanidade está caminhando agora?
Mas eu estava errada quanto aos ensinos do professor. Jamais poderia ser libertada pelos loucos sem antes mergulhar na minha própria demência. As equações eram injustas e tudo em mim diminuía quando eu precisava de soma; dividia, quando era necessário multiplicar. Caí na descrença da fé e o amor pelo mundo ainda pesa e dói.
A carta obviamente não poderia ser dele, já não vivia mais entre nós, além disso se não tivesse morrido seria velho demais para se dar ao trabalho de escrever uma carta tão curta com tanta coisa que teria vivido por ser intenso e fundo. O papel era tão frágil para caber a glória e potência de uma explosão atômica. Me assustei e de olhos cerrados renasci: só poderia ser um poeta.
Impressionada, naquela noite tive um sonho antiquado para moça de respeito: a serpente lambendo os meus pés no paraíso, fazendo cócegas nas partes íntimas do meu corpo de um jeito portentoso. O hálito, antes de ser desejo contido, tinha um cheiro insuportável da verdade que não se pode dizer a uma mulher, o odor cruamente penetrante da morte escorria do canto da boca da víbora como um impulso ao pecado, insultando o sono de Deus. Acordei aturdida no quarto penumbroso, peguei a carta onde só havia uma palavra escrita: TU.
Bethe Oliveira. Economista. Especialista sênior em planejamento estratégico e gestão pública. Escritora de Loucas e bruxas, bruxas e loucas: contos e poeminhas, pela Editora Três Serpentes (insta: @antoniatavares)