“Viemos do Seringal São Pedro, em Xapuri. Em 1966, minha família morava no Quinze. Pai, mãe e seis filhos. Meu pai era hanseniano. Naquela época havia muito preconceito e os vizinhos denunciaram. A lei obrigava à internação compulsória, em completo isolamento, pelo resto da vida. A polícia veio e levou meu pai a pulso para a Colônia Souza Araújo. Levaram também a minha mãe, que, pela convivência com o marido, ficou fechada em uma morada distante. Botaram fogo na nossa casa e simplesmente nos largaram. Eu era a mais velha, com 11 anos. Fiquei cuidando dos meus cinco irmãos. A mais nova tinha um mês. A gente ficou mendigando, dormia pela rua. Tinha que arranjar o pão de cada dia. Se ganhava, comia, se não ganhava não comia. Muitos escorraçavam a gente, com medo de se contaminar. Xingavam, queriam bater, soltavam cachorros atrás. Até tentaram nos matar afogados. Quiseram abusar de mim duas vezes, ainda bem que apareceu alguém para me salvar nas duas, numa delas foi a dona Neném Sombra [figura tradicional do bairro XV]. Nossa vida parecia uma guerra, todo mundo nos atacava. A gente sofreu muito e passou muita fome. Quiseram nos levar para um abrigo, mas a gente sabia que batiam nas crianças e não queria ir pra lá. Uma vez meu pai fugiu do hospital – mais tarde me contaram que ele vivia chorando lá, sempre deprimido. Ele encontrou a gente, foi uma festa. Mas a alegria durou só umas duas horas, porque logo o denunciaram e a polícia veio buscar de novo. Foi um desespero, nós, em pânico, chorando agarrados a ele, implorando para não o levarem. Ele fugiu, se embrenhou na mata e se perdeu. Depois acharam seu corpo. O que aconteceu com a gente foi muito triste, não gosto nem de lembrar.”
Esse relato da desumanidade humana é narrado por Alda Lopes de Amorim, 59 anos, uma das lideranças mais expressivas dos movimentos sociais acreanos.
Cuidar, alimentar e proteger são, portanto, funções que ela aprendeu a desempenhar desde a infância, em condições muito austeras. “As coisas só melhoraram para nós quando consegui um emprego, aos 16 anos. Aí, aos poucos, fomos nos estabelecendo e todos conseguiram se formar”, conta Alda. E foi essa a vitória da primeira, longa e árdua batalha de sua vida.
Mais tarde, apresentando sintomas da doença, também foi internada na colônia. Após dois anos de tratamento, teve alta. A dura experiência do isolamento consolidou dentro de si um ideal pleno de significado para ela: combater o preconceito e lutar pelos direitos dos hansenianos.
“Decidi então ficar nas imediações do Souza Araújo”, lembra Alda. Com outros ex-pacientes que eram rejeitados até pela família, angariou, junto ao poder público, uma área nas proximidades e juntos fundaram o bairro Santa Cecília. “Cada um que saía me procurava, e assim fomos formando a nossa comunidade”, diz. Montaram uma associação de moradores, a terceira do estado, da qual Alda foi eleita presidente dez vezes consecutivas.
“Conquistamos, com um projeto apresentado ao governo federal na década de 80, madeira para 150 casas. Fizemos um mutirão para construí-las. Erguemos 105 casas em 11 dias. Muitos de nossos operários eram mutilados pela doença. Amarravam as ferramentas nos tocos de braços e trabalhavam o dia todo. Éramos muito unidos”, recorda.
Depois veio a peleja pela energia elétrica. Alda obteve a infraestrutura externa, mas ainda precisava de todo o material elétrico para as casas, pois as pessoas da comunidade não tinham renda. “Fui de pires na mão no comércio, expliquei a nossa situação e foram doando tudo. E depois levantamos dinheiro para pagar o eletricista”, descreve.
Alda ainda foi atrás de colchões e redes, porque as pessoas dormiam no chão: “De noite eu ia me deitar e ficava pensando neles. Não conseguia descansar. ‘Preciso ajudar’, pensava”. E obteve o que precisava.
Mais tarde o movimento que ela liderava pleiteou encanamento: conseguiu. Escola: conseguiu. Posto de saúde: conseguiu. Creche: conseguiu. Não com facilidade, não com rapidez. Mas com “muita luta”, nas palavras de Alda.
Formada em Pedagogia, atuou na escola do Santa Cecília como professora, coordenadora e diretora – ao mesmo tempo. Nos fins de semana, organizava reuniões com os pais: “Eu fazia questão da proximidade entre a escola e a família”. E nos recessos? Promovia colônias de férias, para alunos e pais. “Era uma grande oportunidade de integração familiar”, relembra.
Hoje a Escola Raimundo Hermínio de Melo, de ensino fundamental, tem 600 alunos. E agora dona Alda e sua comunidade reivindicam uma escola de ensino médio. “Queremos que nossos adolescentes estudem aqui no bairro porque assim ficam menos expostos a qualquer tipo de violência”, argumenta.
Alda, ou “Aldinha”, como é chamada por muitos, pela competência obtida ao longo de 30 anos atuando em movimentos populares, auxiliou na fundação e organização de diversas associações no estado, tornando-se uma consultora informal no assunto. “Conheço todo mundo e todo mundo me conhece”, diz a líder, que transita com fluência nos gabinetes oficiais.
Atualmente, enfrenta delicados problemas de saúde: “Percebo que meus dias estão encurtando e tudo o que eu quero é bem-estar para trabalhar. Para cada demanda que me trazem e ajudo a resolver, sinto que ganho um dia de vida”.
Uma das maiores satisfações de Aldinha é ver bem-sucedidos os ex-alunos da instituição de ensino que criou e dirigiu. Muitos vêm lhe contar que já são médicos, engenheiros florestais, professores. Reconhecem e agradecem seus esforços.
Com a singeleza de uma menina e a força de uma guerreira, ela avalia a própria história com toda propriedade: “Eu me sinto com o dever cumprido. Sei que contribuí para que a sociedade seja melhor.”