Ir e vir: a batalha das mulheres do seringal

Valda acompanha com a família, de sua casa na BR-364, o avanço da estrada (Foto: Sérgio Vale/Secom)
Valda acompanha com a família, de sua casa na BR-364, o avanço da estrada (Foto: Sérgio Vale/Secom)

Ao percorrer as histórias ao longo da BR-364 é possível passar horas e horas ouvindo relatos de bravura e força de, outrora jovens, homens que abriram passagem por matas e estradas. Tão bravas quanto eles são as mulheres, entre mães, esposas e viúvas que trilharam o mesmo caminho de luta em roçados, estradas de seringa e pelo piquete transformado na rodovia que libertou inúmeras famílias acreanas.

No quilômetro 60 da BR-364, entre Sena Madureira e Manoel Urbano, em frente à pequena Escola Municipal Francisca Rezende de Lima, há 15 anos mora o casal Valda e Chico Rocha. Ao chegar à casa não é possível encontrar Chico. Realidade impensável alguns anos atrás, hoje ele foi a Manoel Urbano, e a esposa já o espera para o lanche da tarde.

“De Manoel Urbano pra cá demorava dois dias, eu vinha de bastão, a pé”, conta Valda, na sala cheia de netos, a filha e genros que estão em visita. Quando perguntada sobre o que enfrentou na estrada que se abria ela logo exclama: “Deus me livre!”. Valda, hoje sexagenária, já caiu do cavalo, fraturou a bacia e tem platina no corpo. De muletas, fazia a viagem sempre que precisava: “Depois que caí do cavalo fiquei com medo de subir de novo, só fazia a viagem a pé”, explica.

“Atolada na lama, ajoelhada pedi a Deus para a estrada sair”, relata Valda Rocha (Foto: Sérgio Vale/Secom)

Após oferecer, a cada minuto, café para as visitas, Valda interrompe o sorriso para se lembrar do dia em que pediu a Deus pela estrada. “Eu estava morta de cansada, já lá no quilômetro cinco, fiquei atolada na lama, ajoelhada pedi a Deus para a estrada sair”.

Um pouco mais distante dali, próximo ao Rio Tauari, Margarida Moreira, em entrevista dada em 2012, aos 78 anos de idade, também contou os percalços que enfrentou na BR: “Eu morava no Liberdade, quando ia buscar minha aposentadoria em Cruzeiro do Sul era todo tempo no ‘pezão’, lama até a cintura”.

A luta contra a lama e o cansaço das viagens não eram os únicos obstáculos a se enfrentar, ainda existe a vida para trilhar. Margarida criou nove filhos sozinha, depois de ficar viuva aos 39 anos. “Vi coisa boa, coisa ruim, tive que cortar seringa para criar as crianças. Era aquela luta, mas, sabe, quem quer possuir as coisas tem que trabalhar”, fala a anciã, sentada no chão da casa da filha. “A alegria é morar perto dos meus filhos”, avalia sorrindo.

Sentada no chão de casa, descascando café e sem perceber que o tempo está passando, Maria do Carmo Campos fala com tristeza sobre o passado, “Eu fui criada na seringa, meu pai foi seringueiro. A gente ‘se lumiava’ com combustão, e quando não tinha era com sernambi. Isso tudo passei na minha vida, comi já sem óleo, só não comi foi insosso. Mas hoje não passo mais”, relembra a dona de casa.

As lembranças do sofrimento trazem à tona uma amargura sem tamanho. “Eu não tive condições de ir ver meu pai. Quando soube que tinha morrido afogado, já estava sepultado”. Ele morava em Manoel Urbano, que há alguns anos era distante dois dias de caminhada da casa de Maria.

Ainda com o passado engasgado no peito, Maria continua o relato da situação da BR-364: “Antigamente a gente andava dentro da lama, os animais cansavam, tinha muitos deles que morriam atolados”. Com o sentimento de que de agora em diante poderá seguir a vida com menos sofrimento, comemora: “Agora nós estamos libertos!”

A BR-364 tem a característica de atrair para suas margens moradores com tanta história quanto a da própria rodovia. “Na zona rural já sabe, a batalha é essa”, recepciona, jogando milho para galinhas e patos, Severina Maria da Conceição, uma mulher valente de 83 anos, que vive com o filho Francisco de Assis em uma colônia ao longo da estrada, na Floresta Maracanã.

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“Eu tenho mesmo é saudade de não poder trabalhar mais como eu trabalhava”, anseia Severina (Foto: Sérgio Vale/Secom)

Severina nasceu nas cabeceiras do Rio Tarauacá, acima do Jordão, no Seringal Independência. Conta rindo seu caminho, de seringal em seringal, até que “varamos, lá do seringal Santa Luzia, aqui pro Rio Acurauá”, onde seu marido, Delmiro Ozório, e seu filho Francisco trabalhavam como carregadores. E continua: “Viemos só pelo pique mesmo, aquele caminho de tatu, aí meu marido, já com 70 anos não podia mais trabalhar, doente”.

Depois que o marido parou de trabalhar, Severina “trabalhava na roça, toda vida, a batalha foi essa mesmo. Criei seis filhos vivos e três Deus recolheu. Fiquei 15 anos cortando seringa, e também tinha criação de animais, pra sobreviver”, conta, já sentada ao lado de seu filho.

“Me criei sofrendo, no terçado, na enxada, no machado”, ela ainda tem muito pra relatar, afinal são mais de 80 anos de vida trilhados com sabedoria. “Era difícil, açúcar não tinha, era na garapinha de cana. Este meu filho aqui nunca comeu um mingau, nunca. Era só aquele angu, mesmo, de água. Muitas vezes até caldo insosso eu fazia pra eles comerem”, diz Severina, olhando para o filho, que, com a cabeça baixa, ouve atento sua história.

Enquanto os primeiros raios de sol entram pelas frestas da casa simples, na manhã fresca, Severina da Conceição avalia: “É, irmão, já passei batalha na vida. Eu tenho mesmo é saudade de não poder trabalhar mais como eu trabalhava, mas pela misericórdia de Deus eu tô contando a história”.

A BR-364 tinha poucos meses com tráfego liberado, nos períodos em que as chuvas são intensas na Amazônia cidades e famílias ficavam isoladas, como mostra a foto de 2008 (Foto: Sérgio Vale/Secom)
A BR-364 tinha poucos meses com tráfego liberado, nos períodos em que as chuvas são intensas na Amazônia cidades e famílias ficavam isoladas, como mostra a foto de 2008 (Foto: Sérgio Vale/Secom)

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Além dos sonhos de Francisco

Antes de chegar às margens da BR-364, há quatro anos, Francisco vivia no Seringal Tocantins, ao longo do Rio Acuraua, que atravessa a rodovia no município de Tarauacá. A partir dos 15 anos de idade começou a fazer o caminho pela floresta que hoje seria o corredor que corta o Acre.

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“Cansei de vender pamonha nas costas, saia às três da madrugada e ia vender em Tarauacá. Hoje você enche um caminhão de abacaxi, de banana e vai vender em Rio Branco”, conta o produtor João Cobra

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