Santos da Floresta

Devoção, milagres e resistência entre os seringueiros do Acre

Havia tempos uma coceira tomava conta do corpo do filho mais novo de Francisca Pereira da Silva, moradora do Seringal Remanso, na região do Espalha, um dos pontos mais isolados da Reserva Extrativista Chico Mendes.  Como a medicação caseira ou química não acabava a micose que incomodava Raimundo Nonato da Silva Souza, então com dez anos de idade, dona Francisca decidiu fazer uma promessa para a Alma Milagrosa de São João do Guarani, de quem se ouvia falar vinha há décadas obrando curas milagrosas entre os extrativistas.

Dias depois, a coceira desapareceu, trazendo alívio para o menino e a família. Hoje com 23 anos, Raimundo Nonato cumpre com mãe a promessa que ela fizera 13 anos passados e todos os meses vai até a capela de São João do Guarani e acende duas ou três libras de vela em agradecimento à graça alcançada. Uma libra equivale a seis velas. 

No dia 24 de junho, dia de São João, a igreja lota de gente que chega de todas as partes, reafirmando a fama da Alma Milagrosa. Nessa data, parece ganhar diferença a devoção de Francisca e sua família, em cujo seio  há histórico de bênçãos recebidas de São João do Guarani: outro filho dela,  mais velho, saiu ferido de uma pescaria em que o esporão do peixe acabou cravando em seu pé. Ambos, mãe e filho, fizeram promessa a São João e ao cabo de um ano o esporão saiu. “E inteiro”, lembra dona Francisca.

Para ficar mais perto da igrejinha construída ao lado do  antigo  cruzeiro de ferro em honra à Alma Milagrosa, na Colocação Guarani, Francisca Pereira mudou-se do Espalha e foi com a família para a comunidade de São João –distante cerca de 30 quilômetros -dando sequência a um interessante processo  de organização comunitária que tem na religiosidade mais um agregador e fator de resistência para permanecer na floresta. “É verdade. Os santos servem de intercessores não apenas para cura com para conseguir terra, trabalho, reaver amor perdido…mas não usam isso para justificar sua luta”, diz  Leôncio Asfury, padre da Diocese de Rio Branco.

De fato, numa pesquisa rápida é possível encontrar santos bastante conhecidos, como São João do Guarani ou Santa Raimunda do Bom Sucesso, em Assis Brasil, como outros que ainda só são identificados pela comunidade que os cultua, como a Alma Milagrosa de Antônio Gouveia, cujos devotos em grande parte estão concentrados na Comunidade Sorriso do Riozinho do Rôla, no seringal Samaúma, na Estrada Transacrena.

No interior do município de Feijó, há uma capela em honra a Santa Maria da Liberdade. Mesmo sendo de acesso complicado, há notícias de pessoas que ainda percorrem o rio Envira para cultuar a santa. Próximo de Rio Branco há a conhecida capela da Cruz Milagrosa, onde é possível ver grande número de objetos resultados de ação milagrosa da alma de um seringueiro que morreu de malária enquanto era carregado em rede pelos companheiros até a cidade.  Para marcar o local do falecimento, fincaram uma cruz que, anos mais tarde, permaneceu intacta durante um fogaréu feito para  brocar o roçado de um colono. Quem testemunhou acreditou tratar-se de uma manifestação divina o fato da cruz de madeira ter resistido ao incêndio, o que deu início a um processo de devoção e fé que segue crescendo nos dias atuais.

Além da capela, Cruz Milagrosa abriga um cemitério, uma das características das comunidades devotas. Em São João do Guarani, o cruzeiro está cercado de sepulturas. Uma delas abriga três crianças que morreram de sarampo.

A devoção  a São João do Guarani começou em 1906, segundo informações obtidas por Klein, quando um homem se perdeu na mata após desviar-se de uma cruz no caminho. Segundo consta, ele tinha medo de cruz e arrodeava a todas que via. Nesse dia, desesperado, fez uma promessa para conseguir sair do mato. E encontrou o caminho certo depois de avistar novamente a cruz, passando sem temor. Mais tarde, relatou o acontecido a um amigo chamado João.

Natural do Pernambuco, João teria morrido às margens de um varadouro na Colocação Guarani mas ele morava na região do rio Iaco, no Seringal Recife. O Guarani era passagem para Xapuri para viajantes originários do Iaco.

O reconhecimento oficial de um milagre é algo muito complexo e exige prova científica. A devoção das comunidades tradicionais, no entanto, são testemunhos de fé na floresta.

Festa para a luz e São Raimundo do Rio Branco

A diversidade religiosa na Amazônia é tão vasta quanto seus recursos naturais. As manifestações variam por região e várias delas já foram amplamente estudadas, como o xamanismo dos caboclos do Pará ou o Santo Daime do Acre, entre outras.  Há festas grandiosas, como a do Senhor Divino Espírito Santo, que reúne os ribeirinhos do Guaporé, em Rondônia.

No contexto acreano, entretanto, o  culto à alma de pessoas simples no passado tem influência na organização das comunidades.¨São João do Guarani se diferencia por ser uma referência comunitária, onde famílias de seringueiros e devotos se encontram¨, diz o Paulo Klein no livro Santos da Floresta: Cultura e Religião Entre os Seringueiros do Acre, publicado em 2003 após longo período de pesquisa. No próximo dia 20 de outubro, os moradores da Colocação Rio Branco, também na resex Chico Mendes, promovem uma grande festa para comemorar a chegada da rede de energia elétrica através do Programa Luz Para Todos e anunciar o padroeiro da comunidade: São Raimundo do Rio Branco. O nome foi escolhido devido ao grande número de pessoas que se chamam Raimundo vivendo na região e o 30 de agosto é a data para homenagear o santo. A velha capela, que não tinha padroeiro definido,  dará lugar a uma nova para reverenciar São Raimundo.

Expiação seringueira?
O fenômeno dos santos da floresta vinha sendo estudado desde a década de 1980  pelo padre Luiz Ceppi, hoje na Arquidiocese de Porto Velho. Ceppi listou cerca de 50 santos populares mas  o professor Estanislau Paulo Klein, da Universidade Federal do Acre, calcula que cheguem a milhares. Em seu estudo, largamente divulgado à época do lançamento, Klein identificou, entre outros, os seguintes santos:

*São João do Guarani

*Alma Milagrosa do Seringal Nova Amélia

Recebe este nome porque a pessoa reverenciada morreu naquele lugar mas a comunidade devota está no Seringal Fronteira, no rio Xapuri. O nome da pessoa era Luiz, nascido no Ceará e foi encontrado agonizando sozinho em sua colocação. Morreu de impaludismo após ser encontrado por um comboero.

*Antonia Lira da Morada Nova

Festejado no Seringal Fronteira. Lira era bem conhecida de seus vizinhos e morreu em 1968.

*Santa Raimunda do Bom Sucesso

Comemorada no Seringal Icuriã, em Assis Brasil,  é considerada santa em todo o Iaco e sua existência foi marcada por dor e sofrimento. Maltratada pelo marido, acabou morrendo tentando dar à luz. Devido à fraqueza da mãe, a criança não nasceu. O local de sepultamento de Santa Raimunda é tido como encantado. Na sepultura há inscrições de agradecimento em espanhol.


*Flor de Natal do Seringal Apudi

*Santa Cruz do Seringal São Cristóvão

*Estelita do Seringal São Salvador
Morreu de hemorragia durante o parto.
*Menino do Miradouro

É assim conhecido por ter sido enterrado  num lugar assim chamado na Colocação Benfica, do Seringal Icuriã. Segundo Klein, a história do Menino do Miradouro é iniciada com dois meninos, irmãos, caminhando em direção à Colocação Talismã. Um deles portava uma espingarda que foi utilizada  para tentar colher marajá, fruta da região. A arma disparou e acertou o outro. Antes de morrer, o menino mais novo pediu água. Quando o outro retornou o garoto estava morto. No lugar onde seu sangue foi derramado, um homem colocou uma cruz como pagamento a uma promessa dirigida ao menino.

*Alma Milagrosa da Lua Nova
Em 1978, no  Seringal Icuriã, uma mulher conhecida como Sebastiana sofreu abuso e foi esfaqueada e morta por um vizinho na frente dos filhos, um deles ainda em amamentação. 

Edmilson Ferreira

edmilson.ferreira@ac.gov.br 

Compartilhe:

WhatsApp
Facebook
Twitter