Texto: Tatiana Campos – Fotos: Angela Peres – Design: Adaildo Neto >> Acesse a Galeria de Imagens Repovoar o rio Iaco com os tracajás – que já estiveram em risco de extinção – e garantir mais uma proteína para a segurança alimentar dos índios Manchineri. Esta é a proposta do projeto Manejo Participativo de Quelônios na Terra Indígena Mamoadate, localizada em Assis Brasil. Este ano quase dois mil animais foram manejados e soltos ao longo do Iaco. O projeto, que tem o apoio técnico do Governo do Estado por meio da Secretaria de Extrativismo e Produção Familiar (Seaprof), é executado desde 2004 por indígenas. A iniciativa partiu da comunidade Manchineri ao perceber a escassez do animal nas águas do Iaco. “Nossos antepassados sempre se alimentaram com o tracajá e ele já não existia mais no rio. Esse bicho faz parte da nossa alimentação e não pode sumir, por isso nos interessamos em desenvolver o manejo. Temos que cuidar da natureza para poder continuar tirando o sustento da floresta”, disse o manejador Francisco Manchineri, da aldeia Jatobá. Em cada aldeia uma família é responsável pelo manejo de tracajás. O objetivo é envolver toda a comunidade indígena no manejo silvestre. De acordo com o técnico da Seaprof responsável pelo projeto, Marcos Góes, os Manchineri solicitaram o apoio do governo para manejar os animais. Eles optaram pelo tracajá com o objetivo de repovoar o rio, garantir a segurança alimentar e, mais tarde, comercializar o animal. “Foi dado um curso de manejo de quatro dias para a comunidade no início do projeto, e a Seaprof dá toda a assistência técnica e acompanhamento necessário para que eles desenvolvam o trabalho, sempre com a preocupação de ensinar a pescar e não entregar os peixes, pois queremos que eles sejam independentes, consigam caminhar sozinhos e tenham o governo apenas como um parceiro”, explicou. O manejador da aldeia Extrema José Samarran Manchineri atua no projeto desde o início e explica que antes do manejo os índios passaram dois anos sem pescar o tracajá dada a escassez nos rios, numa tentativa de não provocar a extinção do animal. “O manejo oferece uma grande vantagem para nós, índios, que é o repovoamento do rio, e já estamos vendo os resultados desse trabalho. Agora vamos trabalhar para que a quantidade de tracajás não diminua mais e nós possamos nos alimentar deles sem agredir a natureza. Antes a gente só comia, e chegou uma hora que ele não estava mais disponível no rio”, disse. Quelônios serão alternativa econômica para aldeia Em cada aldeia há um açude para a criação dos animais em cativeiro, além dos tracajás que são soltos no rio. Um dos objetivos do projeto no longo prazo é a comercialização dos tracajás. Com três anos os animais já estão prontos para o abate. “A expectativa é de que em oito anos o rio esteja repovoado e a comunidade indígena possa dar início à comercialização. No mercado desse tipo de carne, o quilo do tracajá custa em torno de 40 reais. É uma alternativa econômica sustentável para os Manchineri”, disse o técnico do governo responsável pelo projeto. O presidente da Organização do Povo Manchineri do Rio Iaco (Mapkaha), Jaime Manchineri, aposta no manejo de quelônios como fonte de renda para o povo indígena da TI Mamoadate. “Os mais velhos ficaram um pouco céticos em relação ao projeto, pois nunca trabalharam dessa forma, e por isso nem todas as famílias das aldeias se envolveram com o manejo até agora. Mas os primeiros resultados começaram a aparecer e eles estão mais confiantes. Outras pessoas já estão interessadas em fazer parte desse trabalho, que será uma boa fonte de renda para o nosso povo.” Para o próximo ano o objetivo é manejar oito mil tracajás e ampliar o projeto. Um convênio com o Ministério do Meio Ambiente no valor de R$ 177 mil, através de um projeto elaborado pela Seaprof e Ibama, que será gerenciado pela Ong SOS Amazônia, vai garantir a construção de tanques, compra de materiais e investimento em assessoria técnica. Na natureza, apenas um em cada mil chegam à fase adulta A reprodução dos tracajás é anual. A desova e a incubação ocorrem nos meses de junho a outubro, sendo o pico em julho e agosto, durante a época de estiagem. No processo do manejo, os ovos são retirados das covas originais – com todo cuidado, para que seja mantida a mesma ordem – e colocados em caixas de isopor com areia, de onde são transportados para os chamados tabuleiros, covas feitas pelos manejadores, que são monitorados e ficam a salvo dos predadores. Após a eclosão, os tracajás são transportados para uma espécie de tanque. Lá, são alimentados e tratados até que atinjam o ponto certo para a soltura. Os tracajás desovam isoladamente nas praias ao longo dos rios em covas de aproximadamente 30 cm de profundidade. “A profundidade da cova e a incidência de sol influenciam no sexo dos animais. Covas rasas e com mais luz solar propiciam o nascimento de fêmeas”, explica Góes. Cada cova tem em média 30 ovos, que demoram entre 75 e 90 dias para eclodir. Na natureza, segundo o secretário de Extrativismo e Produção Familiar, Nilton Cosson, apenas um em cada mil animais consegue chegar à vida adulta. Com o manejo, esse número aumenta para cem tracajás, o que permite o repovoamento sem criar uma superpopulação e causar um desequilíbrio ecológico. O tracajá foi escolhido entre as espécies de quelônios da Amazônia por fazer parte da fauna do rio Iaco. O técnico do projeto destaca que, ao nascer, os tracajás têm um cheiro característico que atrai os predadores para a praia e faz com que a maioria dos animais não consiga alcançar o rio. “Com o manejo, os tracajás ficam em tanques durante esse período e quando são soltos já não atraem mais os predadores.” Confira o vídeo sobre o manejo participativo de quelônios na Terra Indígena Mamoadate. Cerca de dois mil tracajás silvestres foram manejados e soltos ao longo do Iaco.
| Manchineris buscam resgate das tradições Os índios Manchineri vivem um processo de resgate da cultura tradicional. Uma das conseqüências do contato com o homem branco foi a perda de parte de suas tradições. Jaime Manchineri explica que, com as "correrias", os índios foram divididos em dois grupos: os explorados e escravizados pelos seringalistas, que os transformaram primeiro em mateiros e guias na busca de novas frentes de seringa, e depois em seringueiros e trabalhadores domésticos. Outra parte dos Manchineri foi levada para o Peru, por caucheiros, e vive no país fronteiriço até hoje. “Os parentes que vivem no Peru conseguiram manter a cultura porque não foram tão dispersados, não sofreram pressão cultural como os que ficaram nos seringais. Hoje nós só conhecemos cinco ou seis tipos de pinturas corporais e falamos nossa língua. As danças, os rituais, muitas pinturas e outros costumes se perderam. Quando nos encontramos com os Manchineri que vivem no Peru tentamos reaprender nossos costumes”, disse Jaime. As tradições manchineri são praticadas pelos índios apenas em festas, ocasião em que pintam os corpos e festejam como mandam as tradições indígenas. A hapijihlu é uma festa tradicional e que acontece até hoje. Ela comemora a primeira menstruação de uma menina indígena e anuncia que ela pode ser cortejada a partir daquele momento. Sobre a Terra Indígena Mamoadate A Terra Indígena Mamoadate foi criada pela Funai em 1975 e conta com 313.647 hectares ao redor do rio Iaco (cuja nascente fica no Peru), iniciando no Igarapé Mamoadate e indo até os limites do Brasil com o Peru. O povo Manchineri que vive na TI Mamoadate está dividido nas aldeias Peri, Jatobá, Santa Cruz, Laranjeira, Água Preta, Alves Rodrigues, Senegal, Cumarú, Lago Novo e Extrema. Com exceção de Senegal, Cumarú e Água Preta, todas localizam-se na margem esquerda do rio Iaco. Os Manchineris falam sua própria língua, um costume fortalecido entre a etnia. As crianças aprendem a falar também o português. Hoje, segundo a Mapkaha, a etnia tem 860 índios ao longo do rio Iaco.
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