As narrativas de doença costumam começar de maneira súbita — a queda no supermercado, o inchaço descoberto no abdômen ou pelo telefonema do médico. Este não foi o meu caso. Fiquei doente da mesma forma que Hemingway dizia: “que se vai à falência gradualmente e depois repentinamente”. Uma maneira de contar a história é dizer que eu estava doente por muito tempo — pelo menos algumas dúzias de anos — antes de qualquer médico acreditar que eu pudesse ter uma doença. Outra forma, seria dizer que tudo começou aos meus 19 anos, quando fui tomada por uma fadiga debilitante, com minhas mãos e pés ficando inchados, avermelhados e doloridos durante alguns dias. Uma terceira maneira, é dizer que tudo começou em fevereiro de 2014, numa das idas e vindas do estágio, quando cursava administração em Rio Branco, saí de casa pela manhã com uma rigidez matinal e os pés doendo, mas normal até chegar ao final do dia e não conseguir andar de tanta dor e inchaço.
Nesse mesmo dia, mesmo me arrastando não deixei de ir para aula e segui… Ao final da noite cheguei em casa e ao sentar no sofá desabei a chorar, pois aquilo tudo estava muito estranho, lembro de meu padrasto e meu irmão me levando ao hospital local, mas o médico não soube dizer o que estava acontecendo, me medicou e mandou que voltasse para casa e repousasse. Assim fiz… Minha rotina já era agitada nessa época então não podia me dar ao luxo de ficar doente e nem investigar o que podia estar acontecendo. E isso se repetia algumas vezes a cada 2 meses.
Anos se passaram até que no ano de 2020 tive covid-19 e fiquei em estado grave, mas nada explicava o meu quadro, pois até então eu não teria nenhuma doença pré-existente. Depois dos 40 dias enfrentando essa batalha, não fui mais a mesma. Os sintomas se intensificaram até que eu finalmente resolvi procurar ajuda médica e no primeiro exame já mostrou que tinha algo de errado.
A verdade é que eu não tinha a menor ideia do que realmente era ter uma doença autoimune. Eu sabia que meu pai era portador de Espondilite Anquilosante, mas não imaginava que logo eu, a segunda filha de 4 irmãos herdaria e carregaria essa doença, mas engana-se quem acha que ela veio sozinha, isso seria o menor dos meus problemas. Infelizmente, eu fui diagnosticada com espondilite anquilosante (EA) e doença inflamatória intestinal (DII), além de eu ter predisposição e marcadores positivos para outras doenças autoimunes.
Numa resposta imune normal, o corpo cria anticorpos (moléculas de proteína em forma de Y) e células brancas do sangue para lutar contra vírus e bactérias. A doença autoimune acontece quando, por alguma razão, o corpo ataca seu próprio tecido saudável, voltando-se contra o que devia ser protegido. Essa é a premissa: é um auto-ataque, contra si mesmo.
Minha experiência de sentir-me mal durante anos até receber um diagnóstico revelou ser uma ocorrência comum. De acordo com a Associação Americana de Doenças Relacionadas à Autoimunidade (AARDA), o paciente leva em média cinco anos (e cinco diferentes médicos) até conseguir um diagnóstico. Os pacientes acabam procurando diferentes especialistas para diferentes sintomas: dermatologista, endocrinologista, imunologista, neurologista, reumatologista.
Uma das coisas mais difíceis sobre estar cronicamente doente é que a maioria das pessoas considera incompreensível o que você tem — de elas acreditarem que você tem alguma coisa. Na sua solidão, sua preocupação com uma realidade duradoura, você quer ser compreendido de um modo que não pode ser. “A dor sempre se renova para o sofredor, mas perde sua originalidade para aqueles que o cercam”, observa Alphonse Daudet, escritor francês do século XIX, no relato de sua vida com sífilis, No País da Dor. “Todo mundo se acostuma com isso, menos eu”.
Pode ser que eu nunca saiba exatamente o que está acontecendo no meu corpo. Mas, diferente de pessoas que não têm acesso a bons especialistas (e recursos financeiros para mudanças de estilo de vida), eu tenho sido capaz de lidar com minha enfermidade. Em meio a tudo isso, não importa quão mal eu me sinto às vezes, faço questão de me considerar sortuda por não estar passando minha vida como apenas e tão-somente uma paciente.
Maciely Moura é administradora, publicitária nas horas vagas e especialista em agronegócio. Gosta de escrever, é portadora de Espondilite Anquilosante, uma doença auto imune degenerativa e Doença inflamatória intestinal (DII).