Levantes de grupos prós e contras; correntes partidárias em constantes divergências de opinião; um comitê que pregava a autonomia, defendendo a necessidade dos acreanos tornarem-se iguais em direito e deveres aos demais brasileiros; e até a utilização de um jornal oficial para divulgar notícias, artigos e abaixo-assinados em favor da causa autonomista, são algumas das principais características da luta pela emancipação do Acre, que hoje completa seis décadas.
Se você acha que os embates políticos de hoje são, de longe, os mais polarizados da história do país, saiba que a elevação do Território do Acre à categoria de Estado – que nesta quarta-feira, 15, faz 60 anos – também foi marcada por uma das mais intensas disputas ideológico-partidárias que se tem notícia no desabrochar do século 20, no Brasil.
Nesta reportagem, utilizando-se dos estudos ricamente detalhados pela professora Maria José Bezerra, na sua tese de doutorado de 2006 para o Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), a Agência de Notícias do Acre traz os principais aspectos para compreender satisfatoriamente como foi o processo de elevação do Acre de Território a Estado, na tarde do dia 15 de junho de 1962, com a sanção da Lei n°4.070, pela caneta do então presidente João Goulart.
O discurso patriótico como arma de persuasão
“Acre livre e Brasil mais independente. Conterrâneos de coração, saímos do berço desassombradamente e aceleramos os nossos passos em busca de uma bandeira de liberdade para nossa terra, que é minha e que é tua. Saibamos honrar os méritos daqueles que tombaram pela independência deste rincão, num ardil golpe sem medirem consequência e desprendidos de paixões materiais. […] por um Acre livre, num Brasil mais independente”.
Do artigo Exortação Cívica, no jornal O Acre, assinado por Raimundo Sales Vital no dia 19 de maio de 1957.
O texto acima é um de tantos outros lançados pelo Comitê Pró-Autonomia do Acre, grupo criado nos idos de 1956, segundo a professora Maria José Bezerra, com “caráter cívico, patriótico e ético”, aparelhado por Guiomard Santos para convencer os acreanos de que o Acre deveria tornar-se Estado.
José Guiomard Santos, do Partido Social Democrático (PSD) foi governador do território entre 1946 e 1950, e eleito deputado federal logo em seguida, em 1951, tendo sido o maior defensor da elevação do Acre a Estado e obtido essa conquista.
Porém, para entender melhor um dos capítulos mais importantes da nossa história, é preciso compreender primeiro que, embora o Movimento Autonomista tivesse o hábito de colar à sua propaganda ideológica os feitos de Plácido de Castro – de que a elevação a Estado só honraria ainda mais a façanha dos bravos heróis da ‘Revolução Acreana’ -, a anexação do Acre como território nacional já não havia encontrado a simpatia das forças políticas que protagonizaram a ‘Revolução’, que dirá a elevação.
É que “ao longo do processo da luta contra a Bolívia, [essas mesmas] forças políticas dividiram-se em vários grupos com projetos distintos para a região”, explica a professora.
“Havia aqueles, como Galvez, que defendiam a instauração de um regime republicano, porém subordinado à ‘mãe-pátria’ [o próprio Acre]. E alguns outros, mais ousados, com suas ideias separatistas, que também propunham a separação do Acre do território nacional, formando um novo país”, lembra Bezerra. E como exemplo prático, é “neste contexto que se insere o levante de 1910 em Cruzeiro do Sul, quando os seringalistas e comerciantes de maior peso econômico se rebelaram e depuseram as autoridades constituídas”, relata.
Nesta perspectiva, a instituição da condição de Território pelo governo federal torna-se um freio ao mandonismo das forças políticas locais ante o poder nacional.
Os anos 1950, o petróleo do Moa e a visão do Juruá sobre a causa autonomista
Para reforçar seus ideais de um Acre elevado à condição de Estado, Guiomard Santos, então, organizou um bloco pró-autonomista de políticos locais que, em 1953, ele mesmo municiava com discursos, artigos na imprensa, abaixo-assinados, correspondências particulares, telegramas e relatos de debates sobre a luta pró-autonomista no âmbito do Território. Mas o que pensava-se ser uma causa do Acre como um todo acabou não incendiando todas as mentes, sobretudo os pensadores do Juruá.
“No Vale do Juruá, em documento publicado em O Juruá, o jornalista João Mariano enfatiza que os governos territoriais, incluindo o próprio Guiomard Santos, só investiam em Rio Branco – por ser capital -, e nos municípios vizinhos”. Dessa forma, a causa autonomista não empolgava os moradores do Juruá, por conta do contexto de miséria a que estavam inseridos, segundo a leitura da pesquisadora da USP.
“O Vale do Juruá não está em condições de fazer parte do Estado autônomo do Acre, pois além da falta de vida própria, há de encarar o fator capital: de todos os proprietários e comerciantes do Juruá, somente um, o sr. Raimundo Quirino Nobre está em condições de carregar, por duas vezes ao ano, navio de quatrocentas toneladas de mercadorias, em Belém, para os seus armazéns nesta cidade. Isso indica pobreza da região. […] Faça-se o Território do Juruá. Incentiva-se a sua lavoura e pecuária, organizem-se algumas pequenas indústrias, extraia-se o petróleo do Moa, eis o caminho a seguir”.
Do artigo Autonomia do Acre, no jornal O Juruá, por João Mariano da Silva, publicado no dia 3 de março de 1957.
Segundo a tese da professora-doutora, intitulada ‘Invenções do Acre: De Território a Estado – Um olhar social’, a oposição, representada pelo deputado federal Oscar Passos, líder do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), também advogava contra o projeto de elevação do Acre a Estado por considerá-lo eleitoreiro, já que no entendimento de Passos, o Território não tinha ‘sustentação econômica’.
“Os brasileiros do Acre demonstram, há mais de meio século, capacidade, decisão e bravura para repelir violentamente a dominação estrangeira. Se essas qualidades tivessem sido convenientemente aproveitadas e orientadas na paz, como o foram na guerra, já que o Acre, por sem dúvida, estaria a brilhar na constelação dos Estados brasileiros, rico e próspero, hospitaleiro e feliz. Não houve este cuidado por parte de muitos dirigentes, impuseram-lhes o garrote da dominação dos homens pelos homens. Um feudo foi o que resultou de tanta bravura e esforço. […] Acorrentados pelo governo pela inevitável dependência econômica dificilmente poderão essas populações manifestar livremente a sua preferência política ou sequer a sua opinião sobre os detentores do poder local. Politicamente, o Acre e sua população nada lucrariam. […] A eleição do governador e da Assembleia Legislativa seria uma farsa. […] No momento presente como é público, a União entrega ao Acre mais de 300 milhões de cruzeiros por ano e arrecada, através das Mesas de Renda e Coletorias, apenas 3 ou 4 milhões. Com a emancipação do Território, a União não fornecerá mais essas verbas. […] Os 300 milhões terão que ser arrancados do próprio povo acreano”.
Oscar Passos. Considerações sobre a Autonomia do Território do Acre. In: BEZERRA, Maria José. Dossiê – Acervo: Guiomard Santos (Acre). Elevação do Acre a Estado. Rio Branco: Globo, 1982, p. 61-65
Para Bezerra, o pensamento liberal de Oscar Passos, ao criticar o projeto de elevação do Acre a Estado, é pertinente: “Em primeiro lugar, nos anos 1950, com a crise da borracha pós-guerra, o Acre dependia quase que inteiramente dos recursos financeiros do governo federal, sendo o governo, como ainda é na atualidade, o maior empregador”.
“Porém, embora o projeto do Guiomard Santos tenha sido gestado de cima para baixo, ele buscou o referendo popular a partir da compreensão de que cabia aos representantes do poder político ‘guiar e instruir o povo’. Este era o papel do intelectual, do Estado, das instituições. A sua visão ideológica e política não admitia o conflito e a sociedade deveria ser harmônica e integradora”, completa a pesquisadora.
Jovem cruzeirense, professor e ex-militante da União Nacional dos Estudantes, José Augusto de Araújo era eleito para o cargo de primeiro governador do Acre constitucional. Paralelo a isso, “a elevação do Acre a Estado significaria, naquela conjuntura, a possibilidade de viabilizar um projeto de desenvolvimento para a região”, acrescenta.
Em 1957, como parlamentar da Câmara dos Deputados, Guiomard Santos incorporaria, por meio de um projeto de lei, as discussões que começaram lá em 1954, dentro do Congresso Nacional e fora dele. Esta seria a segunda proposta de Santos, já que que a primeira tinha sido em meados de 47, enquanto governador do Território.
Foi a partir de 1956 que os defensores do projeto de lei de Santos, que ganhara ainda mais visibilidade em nível nacional, começaram a se reunir com os mais diversos segmentos sociais e tornaram comum a elaboração e divulgação de manifestos, sobretudo de autoria do Comitê Pró-Autonomia do Acre, que abre esta reportagem.
Contudo, em 1958, os debates seguiriam ainda mais acalorados, com a oposição ao projeto de Santos – capitaneada por Oscar Passos, líder do PTB local -, sendo projetados também pela imprensa nacional. De um lado, a Associação dos Seringalistas do Acre e a Associação dos Seringueiros do Território Federal do Acre criticavam com veemência a possibilidade de uma elevação a Estado. O pensamento dos integrantes dessas instituições era o de que deixando de ser território, o Acre sofreria impactos muito negativos. “Uma desordem à vida econômica, mormente com a criação de impostos estaduais, além dos já existentes”, afirmavam.
Do outro lado estavam outras instituições como a Sociedade Beneficente Operários de Rio Branco, a Sborba, que cumprimentava Santos, do PSD, por acreditar que seu gesto possibilitaria um passo decisivo para a independência econômica do estado muito breve.
Relata a professora Maria José Bezerra que no dia 5 de junho de 1962, o projeto de lei foi finalmente encaminhado ao presidente João Belchior Marques Goulart, pelo presidente do Senado Federal, Auro Moura Andrade, depois de meses de peregrinação pelos corredores do Congresso Nacional para análises e aprovações nas várias comissões. Neste mesmo dia, João Goulart “reconheceu o mérito do projeto e a sua importância para o desenvolvimento do Acre”, embora tenha apresentado veto parcial sobre algumas questões.
Dez dias depois, em solenidade no Palácio do Planalto, na tarde do dia 15 de junho de 1962, o presidente João Goulart sancionava a Lei n° 4.070, que elevava o Território do Acre a Estado. O Acre se tornava definitivamente Estado.