Mulheres acreanas – artigo

Professora, líder de movimento de mulheres e fazedora cultural, dona Guajarina Margarido é  um símbolo da guerreira acreana (Foto: Arison Jardim/Secom)
Professora, líder de movimento de mulheres e fazedora cultural, dona Guajarina Margarido é “a cara” da mulher acreana (Foto: Arison Jardim/Secom)

Em dezembro de 1977, o jornal alternativo Varadouro, que marcou lugar na história da imprensa acreana, publicou na edição n6 uma longa reportagem sobre as mulheres. Na capa, colocou a foto de uma jovem índia encontrada num prostíbulo de Rio Branco. Tinha um olhar triste, os seios desnudos, sobre os quais pendia um crucifixo, e, no conjunto, um semblante desafiador.

Na época, sob forte ameaça da censura militar e civil, o jornal produzia suas matérias em grupos de três, quatro repórteres, cabendo a um deles ou delas o texto final. Eu e o Silvio Martinello, atual diretor de “A Gazeta”, respondíamos pela editoria. Na redação contávamos com uma pá de gente que não tinha medo de cutucar a onça-ditadura com vara curta. Na verdade, o jornal atraiu muitos colaboradores para discutir e desenvolver pautas, vender assinaturas, dobrar e vender jornal numa luta contra o desmatamento e a “bovinização” do Acre, e defender valorização da história e da tradição do povo da floresta.

Foi nesse clima que surgiu a matéria “Mulheres sem Charme”, que já no título carregava uma ponta de ironia. Sim, porque nos jornais do passado  só apareciam as “mademoiselles”. As outras, com linguagem, aspirações e físico maltratados, formariam uma classe duplamente explorada: pelas condições materiais de assalariamento e desemprego e pela posição de “objeto sexual”. Enfim, menos atraente!

O jornal concluiu que “lavadeiras, operárias, serventes, domésticas, funcionárias e outras categorias são a maioria das mulheres acreanas” e que a origem delas está intimamente ligada à história dos seringais. Houve tempo em que foram “mercadoria proibida”, e outro em que eram “bem-vindas”. Isso dependia das oscilações do preço da borracha nas praças de Belém, Manaus e Londres. Ou seja,  a mulher era literalmente “usada” como estímulo ou desestímulo da produção.

Mas era um tempo em que os coronéis de barranco acendiam charutos com nota de um conto de réis. Depois, a partir de 1910, a borracha amazônica perdeu valor para os seringais de cultivo da Malásia e a situação se inverteu: para segurar os seringueiros que ameaçavam abandonar suas colocações, os próprios seringalistas saíram em busca da “mercadoria” mulher para satisfazê-los. Tentaram o sequestro das indígenas com as sangrentas “correrias” sobre as aldeias. Não deu certo! A segunda opção foi encomendar às firmas aviadoras de Manaus e Belém navios lotados de prostitutas.

varadouroA Província do Amazonas teria enviado, de uma só vez, um navio com 150 delas para o Rio Juruá. Também os regatões, cada vez mais ousados diante do aperreio dos patrões, passaram a levar as preciosas “encomendas” para os seringueiros com entrega em domicílio e um certo sigilo.

Provavelmente, começam aí a definitiva ocupação do Acre e a constituição dos povos da floresta, com a mulher assumindo papel múltiplo, heroico e pacificador. Surge a mulher amante, caçadora e pescadora, agricultora e extrativista, criadora de filhos e animais, especialista em alimentos e plantas medicinais, parteiras, rezadeiras, educadoras e militantes políticas, como se viu nos “empates” contra o desmatamento nos anos 1970. Conheci uma delas em carne e osso, dona Valdiza de Souza, a quem chamei de “mulher do sindicato”. Quanta coragem, solidariedade e poder de liderança existiam nela!

Na quieta e misteriosa solidão das matas, elas, as mulheres acreanas, conseguiram uma fecunda relação íntima com a natureza e, passo a passo, foram demovendo fantasmas como a intolerância da cultura urbana, a vil dependência do metal, os cantos de sereia provocados pelos regatões… Devagarinho, penosamente, alcançaram a simplicidade com sinais de uma vida plena.

Vieram o terceiro milênio, as mudanças, as transformações de uma sociedade em movimento e logos elas se tornaram protagonistas de novas conquistas sob o gentílico “povos da floresta”, prontas para brilhar. Com sua força, sua paz, com o cheiro e sabor acre-doce da natureza.  Diferente a seu modo, eis que a mulher acreana do presente e do futuro consegue ser bela e culta, como se sendo guardiã de um segredo precioso, tecido de amor e luz. Tal qual a índia da capa do Varadouro anunciava com seu olhar duro e limpo!

Elson Martins é jornalista