O inimigo invisível, que hoje parece ser mais ignorado do que temido, em comparação com o início da pandemia do coronavírus, continua travando uma verdadeira batalha contra os profissionais de saúde que seguem no mesmo ritmo na missão de salvar vidas, do lado de dentro do maior hospital de campanha do Acre e que se tornou referência no tratamento da Covid-19 no estado.
Da porta de entrada do Instituto de Traumatologia e Ortopedia (Into/AC), em Rio Branco, até a ala de maior tensão da unidade, que são as UTIs, o que se presencia, entre as equipes que driblam seus medos e não baixam a guarda diante do sofrimento que o vírus impõe aos pacientes, são os princípios hipocráticos de “curar quando for possível, aliviar quando necessário, consolar sempre”. O aforismo define bem o compromisso e a dedicação desses verdadeiros heróis que continuam engajados no campo de batalha contra a pandemia.
Toda vida importa
Com o crescimento exponencial de casos e, consequentemente, a sobrecarga no sistema de saúde mundial, sem que houvesse leitos de UTI suficientes para atender pacientes graves, vieram à tona “escolhas difíceis” que poderiam ocorrer de acordo com a chance de sucesso de tratamento, considerando a idade do paciente, outras comorbidades, a gravidade do seu estado e a possibilidade de reverter o quadro.
Essas condições atemorizaram o aposentado Afonso Américo da Silva, de 64 anos, ao ser diagnosticado com a Covid-19. Acompanhando os noticiários diariamente desde o início da curva epidêmica da doença, ele sabia que a situação no Acre, a exemplo de outros estados, não era confortável, uma vez que as unidades de terapia intensiva estavam sempre lotadas.
Portador de cirrose hepática, doença associada a uma hepatite crônica que adquiriu há alguns anos, ao ser internado no Into com complicações do novo coronavírus, ele tinha a certeza de que não sobreviveria a uma intubação e ao tratamento que costuma ser longo contra os efeitos devastadores que a doença causa no organismo.
“Eu não tinha esperança nem fé de que sairia com vida daqui. Cheguei todo inchado, com muita água acumulada na barriga, e os exames não evoluíam para uma melhora com o passar dos dias. Qualquer pessoa com o um quadro de saúde semelhante ao meu dificilmente sobreviveria ao coronavírus. Na minha cabeça, com a idade e todas as doenças que eu já tinha, era um caso perdido”, lembra o aposentado.
Mas o que seu Afonso não sabia é que, ao deixar sua família do lado de fora da unidade, encontraria outra empenhada em fazer tudo o que fosse possível para salvar sua vida. Há 30 dias internado no Into, o aposentado já não é mais o mesmo de quando entrou. Estampada em sua camisa a palavra “fé”, ele se emociona ao falar do carinho e dedicação da equipe que o acolheu e salvou sua vida.
“Aqui dentro não existe política, existem profissionais. São médicos, enfermeiros, técnicos e todos os demais que fazem parte dessa equipe escolhida por Deus para atuar como verdadeiros anjos da guarda. A fé que faltou na entrada, durante os primeiros dias de internação, hoje não é estampada só em meu peito, como transborda em meu coração pela certeza de sair curado daqui”, diz emocionado.
Humanização que salta aos olhos
Foi conhecendo de perto o trabalho das equipes que atuam na linha de frente contra o coronavírus, percorrendo todo o Into, da UTI à enfermaria, que esta reportagem conheceu seu Afonso. Faltavam poucos minutos para o meio-dia e o aposentado aguardava a chegada do almoço sentado sobre o leito, na enfermaria 7, cercado por um grupo de enfermeiras.
A cena de carinho e os risos que transformavam um local inóspito em um ambiente acolhedor e mais humanizado fazia os integrantes da equipe esquecerem, por alguns instantes, apesar do soar de aparelhos, que estavam dentro de um hospital, no tratamento contra uma doença altamente contagiosa e com sérios riscos de morte.
“A evolução da doença é muito traiçoeira, há horas em que você acha que o paciente está bem e em outro momento ele está mal. A família entra em angústia por isso e acha, às vezes, que a informação que estamos dando é inverídica. Mas não é por falta de veracidade, é porque a cada hora o paciente evolui de forma diferente, com pioras e melhoras. A gente tem conseguido várias vitórias, e o agradecimento é espontâneo e natural entre os pacientes. Tentamos manter o bom humor, apesar de todas as adversidades, para que eles sintam esse acolhimento e não sofram tanto pela falta da família”, destaca Lorena Seguel, responsável em exercício pelo Into/AC.
Amenizando a saudade
Para ajudar a abrandar a saudade de casa, a equipe médica realiza videochamadas para que os pacientes conversem com seus familiares e se mantenham próximos, mesmo que a distância. De acordo com Lorena, tudo é acompanhado de perto por uma assistente social, que antes de entrar na ala de isolamento da Covid-19 utiliza todos os equipamentos de segurança. O aparelho celular utilizado nas chamadas também passa por uma rigorosa higienização.
“O contato por vídeo minimiza o estresse emocional do paciente, abalado pelo isolamento, e traz um impacto positivo na recuperação, que acaba sendo mais rápida. As videochamadas trazem essa sensação de amparo e acolhimento, além de proporcionar mais vínculo com a própria equipe, que, não tenho dúvida, foi escolhida por Deus para vir para cá, e que mesmo diante do desafio e riscos, dedica-se inteiramente à recuperação plena dos pacientes”, observa.
O hospital também adaptou uma antiga área de banho de sol para que os pacientes internados com Covid-19 recebam, a distância, a visita de familiares para amenizar a saudades de ambos os lados. Separados por uma grade de proteção que os mantêm a uma distância segura, o local já foi palco de emocionantes reencontros, realizados diariamente ao entardecer.
A guerra não acabou
Talvez poucos compreendam de fato como é a realidade dentro de um hospital de campanha. Passados quase seis meses desde o início da pandemia, o cenário já não é de guerra, com pacientes graves à espera de vagas de UTI, graças à organização nos fluxos e empenho do governo do Estado em levantar hospitais em 30 dias, com aquisição de respiradores e equipamentos para abertura de novos leitos de terapia intensiva nas unidades de saúde.
Entretanto, a luta pela vida continua. O Into conta hoje com três unidades de terapia intensiva, com a oferta de dez leitos cada. São 260 profissionais atuando diariamente no local. A taxa de ocupação na UTI, neste domingo, dia 20, era de 40%, ou seja, 20 pacientes seguem internados em estado grave. O hospital tem capacidade para ofertar até 50 leitos de UTI destinados a pessoas contaminadas pelo coronavírus.
No hospital de campanha, anexo ao Into, os leitos de enfermaria são ocupados por 54 pacientes. Em todo o estado, 80 pacientes com teste positivo para Covid-19 seguem internados em enfermarias e 25 estão em UTI. De acordo com Núcleo Interno de Regulação do instituto, de maio até aqui, 921 pessoas passaram pelo hospital. Destes, 502 tiveram alta da doença, enquanto 172 foram a óbito.
“Se você for olhar, 260 servidores é muita gente. São pessoas diferentes, famílias diferentes, mas quando chegam aqui têm um denominador comum, que é o interesse na melhoria do paciente. A maioria desses servidores fica triste quando sai daqui e vê as pessoas passeando no parque em frente sem o uso de máscaras, não respeitando o limite seguro de distanciamento. Chegam, inclusive, a colocar o carro no nosso estacionamento, um desrespeito por quem está aqui dentro lutando para manter a vida de alguém e lutando para se manter vivo. Infelizmente, isso vem se tornando comum, apesar das campanhas, de dizer que vai haver multas. Muitas pessoas seguem em total desrespeito, vivendo como se não houvesse mais a circulação do vírus. Talvez a conscientização só aconteça quando algum familiar vier parar aqui, o que não desejamos. Já presenciei muita gente com o remorso de saber que foi responsável de passar a doença para um ente querido, que acabou não resistindo”, relata Lorena.
Apesar de a situação ser mais confortável agora em relação ao início da pandemia, o cenário da doença está sempre mudando no hospital. De acordo com a responsável em exercício pelo Into, há duas semanas os leitos de UTIs estavam todos ocupados.
“Temos uma reserva de respiradores, doados pelo Ministério da Saúde, e dos monitores e bomba de infusão que a Secretaria de Saúde providenciou, além das camas que a gente consegue adaptar. É como se fosse um campo de guerra, conforme vai oscilando e a gente vê a necessidade, vai adaptando. Nós temos duas enfermarias que podem virar UTIs e temos equipamentos para isso. Mas é desesperador você ver 30 leitos de UTI com 100% de ocupação. Então, como a gente já tinha os equipamentos, começou a preparar uma sala que já está praticamente pronta. Se precisarmos de mais vagas de UTI agora, por exemplo, a gente consegue preparar o local em duas horas para receber novos pacientes”, revela.
Multidisciplinaridade no atendimento aos pacientes
Na delicada recuperação livre de sequelas, o médico tem um papel fundamental na assistência ao paciente. No entanto, o ineditismo da doença tem exigido que todos os profissionais trabalhem em conjunto, de igual para igual no tratamento dos pacientes acometidos pela Covid-19.
Além de infectologistas, cardiologistas, gastroenterologistas e intensivistas, outros profissionais entram em cena na manutenção da vida do paciente. E um deles é o fonoaudiólogo, estratégico em procedimentos como o desmame do respirador e a reabilitação da função da deglutição.
Para quem chegou ao ponto da necessidade de intubação, sabe que o caminho da plena recuperação é longo, a começar por conseguir se alimentar com segurança após a retirada do tubo orotraqueal. Isso porque na extubação, quando não há mais necessidade de respirar com ajuda do aparelho, o paciente enfrenta outro risco, o de broncoaspirar (condição em que alimentos, líquidos, saliva ou vômito são aspirados pelas vias aéreas).
A atuação do profissional da fonoaudiologia dentro da equipe multidisciplinar de saúde que atende pacientes com a Covid-19 é descrita pela fonoaudióloga Sóron Steiner, especialista em motricidade orofacial e disfagia.
“A nossa maior atuação aqui no Into, dentro das unidades intensivas, é manter a qualidade de vida, a qualidade respiratória, pulmonar e nutricional do paciente que passa por intubação orotraqueal e que tem um grande risco de desenvolver uma disfagia iatrogênica por conta da intubação. A disfagia é aquela alteração na deglutição, que pode levar o paciente a uma broncoaspiração e, consequentemente, à morte. Trabalhamos no desmame desse tubo, na introdução e na evolução dessa dieta com segurança, para uma alta mais rápida”, explica.
Ainda de acordo com a fonoaudióloga, pacientes que não recebem esse acompanhamento dentro da UTI não têm respaldo para iniciar uma via oral com segurança. “A equipe multi existe justamente para somar e agregar os conhecimentos específicos de cada área. Então, a fonoaudiologia assume essa parte específica de manejo da disfagia orofaríngea, o que acelera o processo de alta do paciente e libera os leitos para recebermos pacientes que também estão precisando desse cuidado intensivo”, frisa Sóron.
Outra frente de trabalho no manejo com o paciente na unidade de terapia intensiva se dá com o nutricionista, que exerce um papel igualmente importante na recuperação de pacientes com a grave Síndrome Respiratória Aguda causada pela Covid-19.
“Um paciente que não tiver um estado nutricional adequado não entrará no processo de cura totalmente. Aqui no hospital, a gente trabalha com uma equipe de quatro nutricionistas, dividindo-se entre as três UTIs, hospital de campanha e enfermaria. Nosso papel é fazer tanto a triagem do estado nutricional do paciente quando entra, avaliações nutricionais diárias e a prescrição dietética. Normalmente, a gente utiliza duas vias de alimentação aqui no hospital de campanha, que é a nutrição por via enteral, através do uso de sonda e cateteres, e a nutrição oral. Trabalho que é feito de domingo a domingo, visitando todos os leitos e fazendo as adequações conforme a necessidade de cada paciente”, relata a nutricionista Irla Medeiros.
O cenário do coronavírus deixa claro que, especialmente dentro de um ambiente de UTI, a abordagem multidisciplinar no tratamento dos pacientes é vital na rotina dos internos, a exemplo da equipe de enfermagem, que faz parte da alma dos hospitais. Os fisioterapeutas também exercem papel primordial na recuperação, assim como os psicólogos e assistentes sociais, que atuam no suporte emocional de quem convive com o medo e a insegurança pela condição vulnerável e por estar longe da família.
Bosque da Vida
A visita ao Instituto de Traumatologia e Ortopedia do Acre chegou ao fim exatamente no corredor que leva à saída do hospital. O local também faz parte do trajeto dos pacientes que recebem alta médica e estão recuperados e prontos para ir para casa.
Durante o percurso que os leva ao reencontro familiar, um dos momentos mais esperados e emocionantes ao longo dessa jornada, eles vão recebendo o carinho e as homenagens dos servidores que os aplaudem na caminhada de volta à vida.
Mas, antes de cruzar a última porta da unidade, que dá acesso ao mundo lá fora, os pacientes escrevem o nome no Bosque da Vida, um painel montado pela equipe do hospital para eternizar os que lutaram e venceram a doença.
O Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Acre hoje é administrado pela empresa Medial, que tem larga experiência em logística hospitalar e no gerenciamento de profissionais de saúde, contratada emergencialmente pela Sesacre com objetivo de ampliar o corpo de médicos, enfermeiros e técnicos, além de outros profissionais que atuam na equipe multiprofissional para auxiliar no tratamento de pacientes com a doença.