Listas

Por Milton Chamarelli Filho*

Acabo de me deparar com uma página da internet cujo título é: “Palavras cultas: 50 formas de melhorar seu vocabulário”. Há vários aspectos a considerar sobre o teor do tópico em tela, mas o primeiro que me chama a atenção é o porquê de as listas terem tomado, atualmente, parte da atenção de tantas pessoas nas redes sociais. Entro no Facebook, e observo que é costumaz pessoas pedirem indicações das mais variadas possíveis, sobretudo filmes, e, com menos frequência, livros. Há uma clara distinção entre esse tipo de gênero e aquele que se faz para se ir ao mercado, porque esta é finita, graças a Deus. 

As listas podem ser infinitas, tanto no que diz respeito ao que podem explorar (as de compras, as de receitas, as de aplicativos para jogos etc.), quanto o que nelas pode “caber” (os dez melhores jogadores, os cem melhores romances ou os 1000 melhores filmes etc.). Umberto Eco dedicou a esse aspecto imemorial da infinitude livro que denominou “A vertigem das listas”.

Essas enumerações podem nos trazer um desconforto ou um mal-estar porque não se sabe ao certo por onde se pode começar e onde se deve terminar, e é aí talvez que tire a sua razão de existir, a de esconder um certo desconforto quando as coisas não estão devidamente ordenadas. Uma crítica às taxonomias foi ilustrada por Jorge Luís Borges. O escrito argentino apresenta em um de seus contos uma interessante classificação, que teria sido encontrada em uma antiga enciclopédia chinesa, segundo a qual os animais se dividem em: 

“a) pertencentes ao imperador; b) embalsamados; c) amestrados; d) leitões; e) sereias; f) fabulosos; g) cachorros soltos; h) incluídos nesta classificação; i) que se agitam como loucos; j) inumeráveis; k) desenhados com pincel finíssimo de pelo de camelo; l) etcétera; m) que acabam de quebrar o jarro; n) que de longe parecem moscas”. 

Nuno Ramos, de forma mais sutil, mas não menos brilhante, põe em questão esse nosso desejo de uma ordenação; escreve o autor: “No fundo, queremos transformar o grito áspero da matéria e dos formatos num baralho numerado em que as cartas se dispersam apenas para retornar a nós em seguida, em tediosas canastras”. 

 Em geral, as listas são feitas por uma pessoa ou por usuários que elegeram os melhores ou os piores de alguma categoria. Por isso, qualquer uma delas é passível de discussão e até de modificações ou acréscimos. Vez ou outra alternam-se alguns lugares entre os 10 mais. Quando se trata de um site patrocinado, a lista é fixa, e o modelo por ela instituído vai servir de referência para quem decidir acreditar que o seu elenco é imutável. Bobagem.   

Os aspectos culturais, sociais e financeiros sempre serão relevantes para incluir esse ou aquele item; particularmente, gostaria que Carolina de Jesus, Patativa do Assaré e Manoel de Barros tivessem entrado no  “Cânone Ocidental”, de Harold Bloom (falecido em 2019), se outra fosse a perspectiva e se fosse possível voltar no tempo e aconselhar o crítico literário estadunidense a inclui-los no rol de autores notáveis. 

50 palavras cultas vão enriquecer meu vocabulário! Hoje, mede-se o domínio do vocabulário de um autor pelo número de vocábulos que utilizou em sua obra.  Supõe-se que Machado de Assis teria usado 16.500 em sua obra; Coelho Neto, 35.000!  

Mas o que são 50 palavras perto do que se pode usar agora ou durante uma vida? E que palavras são essas que me deixarão mais culto? Escolho algumas – porque uma lista é feita assim –, e as únicas hipóteses que lanço sobre elas é que talvez sejam arcaísmos (‘palavra, expressão, construção sintática ou acepção que deixou de ser usada na norma atual de uma língua’: torcionário, simonia), talvez sejam de uso técnico (escaler, sainete, lábil, dispepsia). E aqui, provo do mesmo veneno que criticara. Faço escolhas a partir de algum conhecimento que tenho de língua portuguesa: por escrever e por dever do ofício de professor. 

Mas não me arriscaria a dizer que alguém não as usa de fato. O que me incomoda nisso tudo é o adjetivo ‘culta’ porque uma palavra não é mais ou menos culta; ela pode ser mais ou menos conhecida; os escritores/falantes bem como seus leitores/ouvintes podem ou não fazer uso delas, mas elas estão lá, em um texto (oral ou verbal) de quem as conhece, e, para conhecê-las, é necessário ir além das listas; é necessário acesso ao Conhecimento.

*Milton Chamarelli Filho é professor titular da Universidade Federal do Acre (Ufac) e doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo