A sede do Secretário

Tava aqui me lembrando do dia em que o pai de um dos meus melhores amigos resolveu transformar o terreno baldio em frente à sua casa em um campinho de futebol. Ah, que dia espetacular! Cada um fazia alguma coisa, uns capinavam o terreno, outros procuravam a cal pra fazer as quatro linhas, outros, ainda, buscavam madeira para as traves, e eu enchendo o saco de quem estava empenhado, afinal, pouco me importava, não ia jogar mesmo… Estava interessado mesmo era na reunião dos meninos do bairro, construindo o novo centro de entretenimento esportivo.

Mas o fato é que esse meu amigo tinha uma irmã mais nova, criada como uma princesa. Curiosamente, só quem a conhecia de verdade era o pessoal da família e da escola, e pessoas como eu, que frequentava a casa. O restante dos caras só sabiam que ela era linda, mas nunca a viram na rua brincando, o que fazia dela espécie de lenda.

No dia da inauguração do campo foi um espetáculo! Todo mundo aguardando sua vez e, a cada partida definida, era a gritaria “a cerca é minha, a cerca é minha!” Uma loucura! Até os pais das crianças da região começaram a aparecer, levando seus filhos pra jogar. Foi mesmo um evento.

Eis que a irmã do meu amigo, também curiosa por conta da gritaria, deu o ar da graça na janela da sala, que ficava num cômodo que era mais alto que a rua, o que reforçou a imagem de uma princesa na sua sacada observando os plebeus se divertindo, com seus cabelos dourados sendo tocados pela luz do entardecer, os braços morenos cruzados sobre o batente e um sorriso tímido. O jogo simplesmente parou. Era menino fazendo gol e comemorando sozinho porque o juiz estava admirando a guria, era o banco reserva todinho perguntando quem era, era o recém-chegado de bicicleta atropelando uma criança mais nova que vinha passando. Foi uma loucura.

Um dos rapazes que jogava, que era um dos mais velhos, tinha o apelido de Secretário, pois era ajudante de pedreiro. Tinha o rosto todo marcado por espinhas na sua adolescência, cabelinho enrolado estilo “miojo” e exóticas tatuagens que pareciam ter saído de um caderno de desenho de um menino de cinco anos.

Pois exatamente ele foi o único a tomar uma atitude diante daquela cena, em que mais parecia que a Medusa tinha transformado todo mundo em pedra. Só se escutava balbucios perguntando quem era.

O Secretário saiu como um atleta no final de um campeonato, alcançou os tijolos da rua com seus pés rachados, foi até a calçada e, por entre as grades, perguntou, olhando pra superioridade da Rapunzel, como uma voz fina e trêmula: “A senhora tem água?”

Ela, com a maior calma do mundo e uma paciência imensa se dirigiu até a cozinha real, e veio com uma jarra em inox reluzente que suava mais do que o próprio secretário. Desceu os primeiros degraus da sala usando uma blusinha de ombreiras bufantes, um short jeans, calçada em suas melissas coleção aristocratas, e veio pro segundo lance de degraus, que já chegavam aos portões do palácio.

Na outra mão um copo aguardava a água refrescante, que ofereceu para aquele indivíduo castigado por uma partida nada profissional, suado, cheio de capim grudado em seu corpo magro, porém trabalhado pelo seu ofício, momento épico que transcorreu em câmera lenta.

Serviu-lhe o líquido cristalino, que ele levou à boca. Enquanto engolia, o fluido escorria pelo seu queixo e pescoço, dado o desespero, como se fosse a última vez que bebia água. “Mais!”, ele disse. Enquanto isso ela tentava acertar o copo com aquela cachoeirinha, pois ele não olhava pro que estava fazendo, apenas se dedicava a absorver cada mínimo movimento de quem estava lhe dando água. Ele bebeu mais uma vez e continuou repetindo a cena diversas vezes. “Mais!”, ele dizia, e o povo já começava a rir timidamente. Sua barriga já começara a se parecer com a bola que recebera chutes momentos atrás. “Mais”, era o seu mantra. E até ela, servindo, começou a esboçar um sorriso. E todo mundo começou a gargalhar, porque todos sabiam que ele estava de graça.

Tomou dois litros de água em pouco mais de um minuto o Secretário. “Obrigado, senhora” disse, enquanto finalmente devolveu o copo. Ela falou bem baixo, mas sabemos que ela respondeu “de nada”. Depois, recolheu-se de novo à sua fidalguia, fechando a porta. Em seguida fechou a janela. Significava que não voltaria mais.

Nesse momento, ao perceber que acabara aquela história platônica, o Secretário relaxou os braços e virou pra trás, onde estavam todos a esperar o artilheiro voltar pro game.

A bordo do seu triunfo, retornou pro jogo com um gás descomunal, fazendo toques, correndo de um lado pro outro, como jamais teria feito. Afinal, ele estava com tudo.

Mas vomitou toda a água.

Diego Lourenço Gurgel é publicitário, jornalista e repórter fotográfico; trabalhou a maior parte do tempo retratando o cotidiano do povo acreano, sobretudo os ribeirinhos, os indígenas e o modo de vida do amazônida, daqueles que vivem na cidade e dos que vivem em cada pedacinho da Floresta Amazônica. Gosta de comer bodó quando chove

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