Limpando a casa

Esta quarentena tem me mostrado que tudo de sólido que eu acreditei saber está se desmanchando no ar. O letárgico passar das horas no refugiado quadrado do meu apartamento me ensina, com disciplina e didática, a refazer meus movimentos. Além de retroceder em algumas escolhas que pareciam urgentes, tratei logo de dar importância ao que está literalmente à mão. Como minhas horas sempre foram poucas em casa e para a casa, de cara resolvi me harmonizar com ela. Andei devagar e pesadamente por todos os cômodos à noitinha do dia 18 de março de 2020, último dia de livre contato social.

Observei ótica e contabilmente os microdetalhes de tudo o que faz parte dos cinco cômodos. Alguns objetos pertenciam intimamente apenas a mim. Certos segredos presos em fotografias fluíam timidamente no apagar do dia, sugerindo-me um fugidio ar de mistério que eu dizia a mim mesma sem falar.

O sol se pondo e seus fios dourados penetrando timidamente pela janela, eu chegava do trabalho com a sensação de um filho que subitamente retorna para casa depois do eterno pesar da guerra, trazendo consigo reminiscências de pólvora. A mensagem que o microscópico (novo) corona carrega em si é muito grande para gentes tão pequenas, mas eu não lamento essa avalanche planetária. Somos tão pequenos diante do universo, não é mesmo?

Rodolfo cantarolava as suas canções de pássaros que nos dão asas ainda que presos em gaiolas invisíveis, enquanto eu fremia completando os meus cálculos sensoriais à luz do que já tinha vivido: “Eu não posso te ver meu amigo, mas vejo o que você faz”.

O vírus derrubara todas as minhas crenças numa humanidade envolta em proteção, criadas pelos quadrados dos prédios, do cartão de crédito e da televisão, que noticiava as fúnebres estatísticas mundo afora. A música exerce um poder extraordinário de regeneração em momentos em que não há prazer no riso. Tudo tem acontecido de forma ríspida e triste no meu país e as opiniões político-ideológicas divergentes dividem ao meio o desastre iminente de uma sociedade sob a atmosfera de uma fumaça de morte.  O silêncio do isolamento social lacrou as portas de casa e eu me encontro do lado de dentro.

Me apeguei à faxina, colocando harmoniosamente tudo no lugar. Enquanto limpo, separo as existências da casa por tipo de utilidade e serventia. Às vezes as coisas úteis não servem e muitas das que possuem serventia não têm utilidade. Mais do que objetos, a casa possui memória que recorda os três arianos que iniciaram juntos a jornada desde o primeiro dia do calendário astrológico, cujo tempo não se pode medir em anos, mas em ciclos e relacionamentos, relacionamentos esses que de uma hora para outra tiveram de ser refeitos com outras dobras, outros novelos, ponto a ponto. Além do novo lugar de trabalho de funcionária pública que sou, em casa tenho me ocupado com os afazeres domésticos: organizar, lavar e cozer.

Gosto de deixar a casa garbosa e perfumada. Acho que é assim uma casa, um lugar qualquer disperso no cosmo que exala o cheiro lídimo e indefinível da pessoa que mora nela. O amarelo sombreado de azul é a cor do meu templo, cujo relógio de agora em diante está graduado e bate no ritmo do vírus em seu tempo de destruição e refazimento de escolhas, trilhas e novos versos.

 

Beth Oliveira é bacharel em Economia pela Ufac e coordenadora da Secretaria de Estado da Casa Civil

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