Por Milton Chamarelli Filho*
Não gosto de férias ou gosto tanto delas a ponto de não querer voltar mais ao trabalho, quando volto a trabalhar. Simples assim. Mas o fato é: quando estou trabalhando, meu cérebro não pensa em outra coisa a não ser trabalhar. Isso talvez ocorra pelo próprio vazio que alguns sentem nos seus primeiros dias de férias, a propósito, vacationem (‘lazer’ ou ‘folga do trabalho’), em latim, nos deu vacation, em inglês e vacaciones, em espanhol; ambos derivam de vacare (‘vazio’). O vazio que fica ou vazio que nos deixa o trabalho parece não suportar, a princípio, a dinâmica que associa o hábito a um certo prazer quase obscuro que é o de gostar de algo que muitas vezes quase nos castiga. Daí mais uma nota etimológica que me faz lembrar de que a palavra ‘trabalho’ vem também do latim tripalium, mecanismo de tortura romano, de três paus, no qual os escravos eram flagelados.
Tenho me alimentado deste combustível que é o labutar, talvez eu seja um workaholic, palavra da língua inglesa que serve para designar ‘aqueles que que são viciados em trabalho ou que trabalham compulsivamente’. Não chego a tanto, mas o fato é que…
Neste momento, todos os meus mecanismos de satisfação psíquica estão como que voltados para o que o faço, e penso que isso funcione assim como uma forma de canalizar o desejo e desaguá-lo em uma só foz. Por vezes, nos tornamos inconvenientes porque falamos sempre e só nisso, em laborar, e o fazemos de forma tão natural que não sabemos o quanto isso nos torna importunos para as outras pessoas que estão a nossa volta.
Pessoas assim, como eu ou você, sempre estão se autopoliciando para atingir a meta, e isso faz com que estejamos constantemente insatisfeitos, por mais que sejamos produtivos, e, por mais que o nosso currículo já tenha algumas linhas a mais, nunca é o suficiente. Sempre achamos que estamos fazendo pouco.
Se ser produtivo pode ser positivo, por outro lado, pode te corroer se você se coloca na posição do músico Salatieri, ao invejar Mozart, como nos mostra o filme Amadeus, de Milos Forman. Isso adoece porque genialidades são insondáveis porque você pode estudar física mil anos e não chegar a algo tão simples como a fórmula da teoria da relatividade de Einstein: E=mc². Isso tudo diz muito sobre nós, sobre que nos tornamos, o que almejamos e o que deixamos de querer.
Onde nos perdemos? Onde erramos, se é que nos perdemos ou erramos? Talvez nos falte lazer, mas também não podemos justificar a falta de lazer pelo excesso de trabalho, por mais que isso hoje possa nos parecer normal. E aqui convém lembrar Nietzsche: “Todos vós, que amais o trabalho desenfreado (…), o vosso labor é maldição e desejo de esquecerdes quem sois”. Ao que se complementa pelo que disse Freud: “Todo excesso esconde uma falta”.
Precisamos de mais alma e coração, precisamos não invejar aquela pessoa que fica ali no bar a jogar cartas ou dominó. Será que conseguimos? Não estou colocando tudo no rés do chão, ao opor um trabalho ao que pode ser um lazer; ele pode, como teria dito Confúcio. Ele só não pode te sorver ao ponto de você perder a sua espontaneidade, sua inocência e seu olhar para a vida, que deveria tão natural como as coisas são.
E é nesse enlace que as coisas e você se fundem, as plantas, os sons, os cheiros e os sabores, pela pluralidade do ser despojado, a ponto de você poder “observar os detalhes que ninguém mais vê” (do filme Amélie Poulain) e se deixar confundir com o próprio tempo ou ausência dele, para que surja o deleite do ócio e deste então brote o desejo de um trabalho criativo, que é esse nos faz viver. Boas férias.
*Milton Chamarelli Filho é professor titular da Universidade Federal do Acre (Ufac) e doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo