Por Milton Chamarelli Filho*
Vivemos em uma época de fake news, ou isso não será verdade?
Insisto nessa pergunta insólita porque talvez (ou só agora) nos damos conta do poder da informação e da notícia, do seu alcance e da sua reverberação, talvez até na (da) própria mídia.
Ouso dizer que somos ingênuos aos nos deparar com esse conceito porque notícias falsas sempre existiram: é um fato tão antigo quanto a transmissão de informações na Roma Antiga e tão novo quanto a disseminação de factoides pelas redes sociais digitais. Romeu não teria se suicidado se não soubesse da suposta morte de Julieta, já antevira ficcionalmente Shakespeare em uma das suas mais famosas tragédias. Marco Antônio também não houvera tirado sua vida se não fosse a notícia de que Cleópatra já estava morta.
Há muitos outros fatos criados propositalmente para formar ou mudar uma opinião, porque sabemos que, uma vez estabelecida (a opinião pública), encerra-se como uma espécie de julgamento sobre os acontecimentos e sobre quem neles está envolvido. Alterado o fato pelo poder da notícia, a ele adere a dimensão simbólica da qual nunca mais se separará. E é sobre eles que falaremos no dia seguinte, faremos as nossas apreciações e nossos juízos de valor.
Há dois fundamentos que nos fazem acreditar na verdade das notícias: a linguagem e a credibilidade de que a mídia, de uma maneira em geral, até há alguns anos gozava entre nós. A linguagem, pela sua dinâmica de sociabilidade, que faz o homem compartilhar seus anseios, seus desejos e sua dor. A credibilidade, pela suposta objetividade e neutralidade do discurso jornalístico; credibilidade que se traduz pelo seu ethos, ao “nos inspirar confiança, de saber do que se se fala, de ser honesto e íntegro”.
Como uma avalanche, o ethos do jornalismo foi disseminado nas redes sociais, por isso, hoje, mais do que na época de Benjamin Franklin ou Orson Welles se fala em fake news, porque mentira e verdade andam juntas em meios que julgávamos críveis até então. Transferiu-se a suposta isenção tecnológica para os meios e até para os seus atores. Mas quem são eles? São os que agem no anonimato ou são os que usam da sua autoridade para espalhar notícias falsas, a favor do que julgam não ser verdadeiro, mas convincente, sempre em benefício próprio ou de um grupo, ou de um ardil para difamar pessoas públicas?
E a credibilidade de que antes gozava a imprensa em geral e até os meios oficiais passa a ruir pela aleivosia, pelo embuste, pela mentira, tão inútil quanto a omissão da verdade, como bem mostrou George Orwell, em 1984. É das “máquinas de lama”, conforme termo usado por Umberto Eco para designar os inúmeros canais que difundem inverdades, que temos de nos afastar.
Ameaça-se assim a democracia, que tem em seu último baluarte a ética. Com a perda da ética, perde a democracia, perde-se a democracia. Passamos a navegar em um mundo de pós-verdades, talvez em uma nova era que será chamada pós-democrata ou de simulacros? Eis os dilemas e paroxismos dos tempos atuais. Eis alguns dos problemas com os quais os jornalistas atuais terão de se defrontar: dar visibilidade aos fatos reais em meio à competitiva visibilidade dos fatos irreais. Em qual deles o público prefere imergir, pílula azul ou vermelha?, Matrix? Sugestão única.
Despir-se das crenças de que as não verdades são verdadeiras, ainda que você faça parte daquele grupo de pessoas que acredita que as músicas boas sejam aquelas tocadas na estação que seu grupo escolheu para ouvir.
Em meio ao imenso jogo de interesses pessoais e institucionais, o desafio pode estar dentro do próprio trabalho, nas redações de jornais e telejornais, se é que elas ainda existirão.
Fazer jornalismo hoje é um desafio. É estar ciente de que se pode estar entre a gota do oceano e a gota que transborda o copo. É um limiar que só vocês poderão encontrar, no dia a dia, na labuta de procurar a melhor fonte para construir o melhor fato. Sim, porque os fatos estão lá para serem construídos, vividos até, porque a notícia passa por inúmeros filtros (ou forças, para usar um termo do pesquisador português Jorge Pedro Souza) e um deles é você.
*Milton Chamarelli Filho é professor titular da Universidade Federal do Acre (Ufac) e doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo