Raspadinha

Por Diego Lourenço Gurgel*

Uma vez, eu e meu amigo Gott estávamos felizes da vida, pois o pai dele havia comprado uma maquininha de fazer raspadinha (ou raspadilha). Tá, parece coisa boba, mas numa época em que um picolezeiro passava uma vez por semana e o carrinho da raspadinha a cada ano bissexto, era coisa de louco ter raspadinha à hora que quisesse.

E a gente era daqueles meninos lombriguentos que quando ganhava um pote de Chandelle, um bribote industrializado e que chegava a ser considerado “coisa de rico” na década de 80, comia dançando e ciscando os pés de tanta felicidade. Às vezes guardávamos e só comíamos quando tinha um amigo por perto, pra ostentar tamanha sorte. 

Beleza. Ele morava na rua de trás, e foi lá em casa só pra me chamar pra fazer o djabo da raspadilha! Naquele tempo a gente só caminhava se tivesse muito cansado, pois até pra ir comprar pão a gente ia nas carrêra.

Imagina pra ir fazer raspadilha? Os pés batiam na bunda de tanta velocidade. Acontece que, no caminho, encontramos um colega que, naquela idade, uns oito ou nove anos, pesava o triplo de nós e amavaaaaaa serrar nossas iguarias. Ele perguntou “ondjé que vocêis tão inummm?”, com aquela cara de pidão de sempre.

O Gott deu um salto mortal pra trás dele, sinalizando “nãoooo” com a mãozinha pra mim, mas quando percebi era tarde! Já tava soltando:

– Tamu inum fazê raspadilha na casa do Gótchhhhhh!

O olho desse menino chorou dum lado e remelou do ôtu. Brilhou mais que cilibrim. Ele gritou:

– Êitaaaa, eu tamém vôôô!

Meu camarada Gott, parceiro de tantas aventuras, balançou a cabeça, sincronizada com os ombros e disse, desolado:

– Bora, né?

Chegando lá, Gott já tinha botado três formas de gelo pra congelar no dia anterior, só pra descatitar em raspadilha no dia seguinte.

Na cozinha, ele pegou a primeira forma, rodou a manivela da traquitana oitentista, e a raspadinha ia saindo que nem neve por baixo, num copin daqueles listradin de virá cachaça. Uma forma dava só um móizin de gelo, que mais enchia uma cumbuquinha.

O gordin automaticamente já pegou e virou o primeiro copo, com tanta voracidade que chega uzói dele fecharam tudo, de tanta dor no quengo que o gelo causou.

Agora sou eu – exclamou Gott.

Girou, girou, girou, e quando o Gott veio com a outra mão pegar o copo na parte de baixo, era o canto mais limpo, o rechonchudin já tava virando o segundo copo, ô minino esgalamido!

Quando foi a última forma, o Gott já avisou em voz alta pro pidão:

– Esse aqui é meu e do Diego, hein?  Sáfora, otáro! Cê otário otário – a gente repetia as coisas pra ficar bem claro.

Bem caprichadamente, ele girava a manivela em câmera lenta, pra sair aqueles floquin ajeitado, no doze mermo. Aqueles floquinhos iam caindo lentamente, e eu fazendo a segurança antes do muleque maroto abarcar aquela última preciosidade, afinal de contas, só depois de fazer mais gelo é que íamos tentar de novo. O copo foi enchendo, e eu com os braços abertos impedindo qualquer movimento sorrateiro dele, de pegar o último copo. Ele, vendo aquilo, ainda me desafiou:

– Vô pegar már não, abestado! Cê abestado abestado!

Quando o copo encheu, o Gott pegou duas colherinhas pomposas da mãe dele, dessas de comer pudim, mas, como pudim era coisa rara, usava-se pra passar manteiga no pão que vendia no japonês da esquina.

Aquela obra de arte que fazia até caracol estava quase pronta. Eis que ele abriu o armário e pegou um litro de guaraná Nauense, que é um xarope que você dilui na água pra tomar que nem refresco – explico pra quem for de fora do Acre saber.

Ele abriu com uma cara de sabichão, olhando pro bola, tipo como quem queria dizer:

– Presta atenção agora, abestado!

Vocês tinham que ver a cara do outro moleque pidão, era muito engraçada! No momento de derramar, o mundo (juro por Deus) ficou em câmera lenta. Aquele fio viscoso caía nos primeiros flocos de cima, que iam derretendo aos poucos! Parecia uma cena da propaganda da própria raspadinha!

Aquilo foi ficando com uma cor tão linda que nessa hora o gordin abriu a boca, alucinado. Terminado o processo, começamos a dividir aquela deliciosa iguaria de guaraná, gelada, gostosa!

Com a cara de quem acabara de descobrir que o mesmo ator que fazia o Jaspion era o que vestia a roupa do Gigante Guerreiro Daileon, ele solta a frase, triste, falhada:

– Êiii, eu também quero assim!

Aí foi a hora da vingança do Gott. Ele olhou bem pra cara dele e disse:

– Se tu quiser mais, vai lá na tua casa e busca três forma de gelo, infiliz! 

Esse menino saiu, com aquela bermuda que deixava aparecer o rego, muito triste, pois morava exatamente três quarteirões longe dali. Nunca que uma forma de gelo chegaria inteira de lá! 

Foi a raspadinha mais gostosa que eu já tomei!

Diego Lourenço Gurgel é publicitário, jornalista e repórter fotográfico; trabalhou a maior parte do tempo retratando o cotidiano do povo acreano, sobretudo os ribeirinhos, os indígenas e o modo de vida do amazônida, daqueles que vivem na cidade e dos que vivem em cada pedacinho da Floresta Amazônica. Gosta de comer bodó quando chove.