Isabel de Souza é moradora da margem direita do Rio Acre, no fim da Estrada do Amapá, em Rio Branco. Um ano após ser afetada pela inundação recorde de 2015, anuncia: “É, menino, esse rio precisa ser muito estudado, ainda!”
Pois já há gente fazendo isso! A Expedição Rio Acre, organizada pelo governo do Estado e Sindicato dos Engenheiros do Estado do Acre (Senge), partiu dia 5 de março de Porto Acre e vai até a sua nascente, em Assis Brasil, onde pretende chegar no dia 24. A equipe está fazendo os estudos desse curso d’água que percorre oito cidades e há alguns anos apresenta o ciclo de enchentes e secas alterado.
Ao todo, são mais de 20 pessoas, entre pesquisadores e pessoal de apoio, fazendo estudos de hidrologia: registram a qualidade da água, vazão e velocidade do rio, além de apontamentos geológicos e um compõem um inventário sobre relevo e população. É o marco zero para futuras ações que preveem melhor relação das cidades com o rio, durante seus períodos críticos.
“Vem aqui que tem a marca certinha”, avisa Cícera Alvares, moradora há 50 anos da comunidade Prevenção, na margem direita do Rio Acre, no município de Capixaba. Ela chama o geólogo Amilcar Adamy para ver onde chegou a água na inundação do ano passado. Com um copo de café numa mão e a outra apontando para a marca d’água na metade da porta de sua cozinha, diz: “A maior cheia que tinha dado molhou dois ‘degrauzinho’ e foi embora. Essa de 2015, Deus me livre, só se entrava nadando aqui em casa”.
“Antigamente, o engenheiro era forjado só para gerar impactos ambientais, hoje esse profissional tem embutida no seu projeto a mitigação ambiental. Isso passa também a ser função do bom engenheiro”
Ana Stravas, engenheira – Sipam
Os regimes de seca e chuva têm sido cada vez mais intensos na região. “De 2012 para cá, praticamente todos os anos os nossos rios têm passado da cota de transbordamento”, explica Vera Reis, coordenadora da Unidade de Situação Hidrometeorológica do Acre, uma ação compartilhada entre a Secretária de Meio Ambiente do Acre (Sema) e o Instituto de Mudanças Climáticas (IMC).
O que fazer
Dentro das possibilidades de o Estado lidar com esse fenômeno da natureza, ações já são adotadas. “Uma das medidas foi a implementação de uma rede hidrometeorológica no estado. Isso deu cobertura aos rios que apresentam variações constantes de nível, afetando as populações ao longo dos tempos, como o Juruá, Tarauacá, Envira, em especial a Bacia do Rio Acre, em que os extremos têm sido mais frequentes”, avalia Vera.
O objetivo da expedição é prevenir que os impactos da correnteza, que leva árvores, casas e até divide bairros inteiros sejam minimizados. O Acre decide conhecer melhor seu rio. Vera detalha o que poderá ser feito: “Decidimos realizar um trabalho focado na regularização de vazão, para melhor aproveitamento do excesso de água que cai durante a estação chuvosa e também poder utilizá-la durante a estação seca”.
O grande lago
Na margem esquerda do rio, na Reserva Chico Mendes, em Capixaba, durante a feitura da farinha, o agricultor Raimundo Nonato afirma: “Eu acho que com menos de cem anos não vem outra alagação como a de 2015 não”. O conhecimento popular de Raimundo tem base também no passado. Tendo sido criado e trabalhado na outra margem do rio, na fazenda do Zé do Coco, ele lembra do que já ouviu: “Tem gente aqui com 80, 90 anos, que nunca viu uma alagação do tamanho dessa”.
Sua metodologia, mesmo que não científica, faz Raimundo duvidar de qualquer verdade absoluta: “Rapaz, eu não tenho certeza de nada, isso é coisa da natureza”.
Amilcar Adamy, o geólogo da turma, durante suas pesquisas nos solos das margens, olhando para história do Acre, reafirma o sentimento de Raimundo: “Somos eternos aprendizes”. O geólogo aproveita para contar sobre a formação do estado e de seus rios, e como o passado afeta tanta gente nos tempos atuais.
“A história do Acre começou há pelo menos 11 milhões de anos [período geológico conhecido como Mioceno], quando a cordilheira andina começou a se elevar. As águas do Rio Acre corriam para o Oceano Pacífico, quando os Andes subiram, houve uma mudança brutal”. Adamy, que está há mais de 40 anos na Amazônia, trabalhando pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM), prossegue de forma didática: “Essas águas começaram, então, a se acumular cada vez mais, formando um grande lago e depositando sedimentos”. Ele dá conta de uma questão de um detalhe relevante: parte da razão das inundações em nosso estado veio daquela época.
“Aconteceu algo mais durante o período do grande lago, ocorreu a deposição de muito detrito. No Acre, são pelo menos 800 metros do sedimento a que chamamos de ‘Solimões’”, continua o geólogo, enquanto aponta para o Rio Acre, sentado ao lado de um dos moradores afetados pelas cheias. “Esse acúmulo, quando está em corpo d’água, é de natureza argilosa e impermeável, não proporciona a passagem da água”, continua.
Adamy se prepara para mostrar a relação da história com o presente: “O depósito de sedimentos que formou nosso estado, de natureza argilosa, faz com que a água da chuva que cai não consiga se infiltrar nos terrenos, assim ela escoa toda para o rio, aumentando o nível das águas, até que transborde. Aí começamos a viver o problema das inundações, como foi em 2015”.
Seu Raimundo também dá sua contribuição para a expedição: “Só a natureza pode fazer algo no Rio Acre. Ela é feroz, ela dá, ela tira”. Seguindo esse saber de Raimundo, estamos ouvindo, lendo, sentindo e aprendendo com a natureza da Bacia do Rio Acre o que ela nos permite fazer.