Entre dois amores – artigo

Lembranças do seringal (Foto: Arquivo Pessoal)
Lembranças do seringal: Rio Envira/Feijó (Foto: Arquivo Pessoal)

Quando eu nasci, em meados de setembro dos anos 90, no pacato e isolado Seringal Boca de Pedra, localizado nas cabeceiras do Rio Tarauacá, não sabia que teria o privilégio de desfrutar de duas experiências magníficas e viver dois grandes e sólidos amores ao mesmo tempo.

O primeiro deles era seringueiro. De família humilde e o mais velho dos nove irmãos, teve que abrir mão da infância para trabalhar. Com o tempo, as responsabilidades só aumentaram, vieram os filhos e a vontade de lhes oferecer uma vida melhor.

Já o segundo, esse era forasteiro. Natural de São Paulo, de família tradicional, o rapaz abriu mão da faculdade de engenharia para viver uma relação de cuidado, ideologia e cumplicidade com os índios do Acre.

O que os dois tinham em comum? O amor incondicional pela menina boca pedrense. Bem mais velhos que ela, eles a ensinaram, cada um a seu modo, os verdadeiros valores da vida: honestidade, coragem e determinação.

E foi nas águas do Rio Envira que os amores se cruzaram. Fiquei sob os cuidados do forasteiro paulista, que acolheu uma desconhecida, de sangue diferente, e decidiu chamar de filha.

O outro partiu deixando para trás o coração, a menina que tanto amava. Mas carregava na mochila e no coração a certeza de que aquela era escolha mais sensata a se fazer. Afinal, a bebê estava muito doente, precisava de cuidados e, naquele momento, era o que precisava ser feito para salvar sua vida, ainda que lhe doesse muito.

E foi assim que eu cresci: filha de dois pais. Dois amores que não se explicam. Dois amigos de uma vida toda. Por diversas vezes, ouvi a seguinte afirmação: “pai não o que faz, é o que cria”. E por algum tempo, estive certa de que essa ideia era universal e se aplicava em todas as situações.

Ocorre que me reaproximei do meu pai biológico apenas pré-adolescência, pois não é fácil colocar na cabeça de uma criança que um homem que mora em outra cidade é seu pai. Mas foi no dia a dia que percebi a grandeza daquele senhor, e quão generoso ele foi quando decidiu o nosso destino.

Afinal, o que é ser pai? É ter parentesco sanguíneo? O nome no registro de nascimento? Assumir essa função na vida do outro por amor? Optar pela dor da distância para que o filho trilhe outros caminhos?

Ser pai é tudo isso e muito mais. É passar meses fora de casa e mesmo assim saber continuar presente. Presente na construção do caráter, na influência cultural, na formação acadêmica, tornando-se, ainda que a distância, o melhor amigo.

Também é optar por conviver com a distância, com a dor da partida, para que a filha tenha as oportunidades que ele não teve. É cuidar de longe. É amar o desconhecido. É acolher, mesmo na ausência da reciprocidade. É entender que alguns amores precisam de tempo para desabrochar.

Mas amor é feito de trocas. Trocas de gentilezas. De um café a dois, um filme ou livro compartilhado, um papo despretensioso e, quando necessário, um pedido desculpas. Não espere vir até você, ouse ir até ele. Quando o carinho não vem deles, dos meus pais, parte de mim.

Sobre a famosa frase “pai não é o que faz, é o que cria”, descobri,de maneira muito graciosa e especial, que tanto no relacionamento com seu Antônio Figueiredo, o seringueiro, quanto com José Meirelles, o “Velho do rio”, há paternidade, amizade e amor sincero.

Maria Meirelles é jornalista

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