A política pública de educação para os povos indígenas do Acre tem passado por constantes transformações. O Estado consolida suas ações a partir das demandas que emergem das aldeias. Esse processo educacional, responsável pela garantia de direitos, hoje é a base do fortalecimento cultural dos povos da floresta. Neste depoimento, o cacique da Aldeia Água Viva, de Tarauacá, Bené Huni Kuin, relata como tem ocorrido o processo:
“São duas cobras: uma engolindo a outra. A Língua Portuguesa e a Língua Hãtxa Kuîn [dialeto Huni Kuin]. Nesse processo de educação homogênea, percebemos que a nossa cultura e língua estavam sendo engolidas pela Língua Portuguesa. A jiboia grande, a língua majoritária, a língua oficial brasileira, estava nos engolindo. E, apesar de o povo Huni Kuin ser mantenedor da sua cultura, a cobra grande nos devorava.
Algumas de nossas aldeias já estavam dentro da barriga da cobra, e nos perguntamos o que poderíamos fazer para reverter isso. Então percebemos o tamanho do desafio que seria sair da barriga da cobra. Tudo isso nos fez entender e reconhecer que língua oficial e majoritária é a nossa, a Hãtxa Kuîn.
Ela não está oficializada pela lei, mas por nós mesmos, porque é a nossa língua-mãe. Nela estão nossas características pessoais. Precisamos mantê-la para nos comunicarmos e existirmos como povo. Caso contrário, muito em breve, o povo Huni Kuin estará apenas na história. E nós não queremos ser apenas história.
Muitas tradições do nosso povo se perderam, porque os conhecedores, os nossos mestres, levaram para a eternidade. Com essa educação específica, realizado em parceria com o governo, vamos perpetuar e fortalecer a nossa cultura. Somente assim, a jiboia não irá mais nos engolir e poderemos caminhar em comunhão.
No Acre, estamos trabalhando para que os ensinamentos da Língua Portuguesa se unam aos nossos conhecimentos, dentro e fora das salas de aula, nas nossas aldeias. Uma língua respeitando a outra. Tudo começou em 2004, quando eu trabalhava na Assessoria Pedagógica da Educação Escolar Indígena, na TI Praia do Carapanã e a gente ouvia falar em educação indígena diferenciada. Nesse período, comecei a me perguntar o que seria essa educação diferenciada.
Para o público não indígena, a diferença estava homogeneizada, pois a cultura indígena acreana Huni Kuin parecia ser a mesma dos índios do Sul. Em conversas com o doutor em Linguística pela Universidade de Brasília [UnB] Joaquim Maná Huni Kuin, percebemos a necessidade de trabalhar essa diferença e de discutirmos a nossa educação.
Foi quando concebemos um modelo de educação indígena específica, a Huni Kuin. O Paulo Roberto [Ferreira], da Secretaria de Estado de Educação, foi nosso parceiro nesse processo. A partir de 2004, a proposta de ensino foi levada às 12 TIs Huni Kuin existentes no Acre.
Montamos uma equipe: quatro professores visitaram esses lugares, para mostrar como fazer a diferente e, principalmente, que a diferença estava em nós mesmos. Em 2009, tive o privilégio de falar sobre isso no curso de formação de professores indígenas, que contou com a presença de representantes dos 15 povos do Acre e do então governador, Binho Marques.
Nosso desafio estava posto. Começamos a estruturar esse modelo de educação, que valorizava a especificidade da cultura de cada povo. A partir daí, percebemos que formar professores e educadores indígenas para atuar apenas na sala de aula não era suficiente. Precisávamos ir além.
Nos anos seguintes avançamos. Em 2011, com o apoio do governo do Estado, CPI, Organização dos Professores Indígenas do Acre [Opiac] e Unicef, entre outros parceiros, realizamos a primeira experiência do curso de formação de política linguista, que contou com a presença de 50 professores, na Aldeia Água Viva. Foi um sucesso.”
Bené Huni Kuin é professor na Aldeia Água Viva, localizada na TI Praia do Carapanã