Compromisso do governo do Acre com a saúde e inclusão da população trans muda realidades

Com colaboração de Carlos Alexandre

Ao nascermos, pessoas alheias a nós definem nosso gênero tendo por base nossos órgãos genitais. Existem, para essas pessoas, apenas duas opções: o masculino e o feminino. Mas há pessoas que carregam consigo, ao crescer, um sentimento persistente de que estão vivendo em um corpo incompatível com seu sentimento interno de ser do sexo masculino, feminino ou outro. Esse sentimento é chamado de disforia de gênero.

Existem lugares que causam angústia. Esse sentimento vem acompanhado, geralmente, de outro: inadequação. Juntos eles geram ansiedade ou, até mesmo, depressão. Para pessoas transexuais e travestis, esses lugares são seus próprios corpos. Foto: reprodução internet

Segundo a publicação médica Manual Merck de Diagnóstico e Terapia, estima-se que a disforia ocorra de cinco a 14 em cada mil bebês cujo sexo de nascimento é definido como masculino, e de dois a três em cada mil bebês cujo sexo de nascimento é feminino. O sentimento de inadequação perante o próprio corpo durante o crescimento e a vida adulta acabam por criar, na vida de uma transexual ou travesti, percalços a serem vencidos.

Buscando compreender e ajudar a superar os obstáculos impostos por uma vivência trans, o governo do Acre tem buscado oferecer assistência a essa população, por meio de ações que pretendem humanizar, acolher e respeitar as subjetividades de homens transgênero, mulheres transgênero, travestis e pessoas não binárias.

Triste realidade

Em 2022, o Brasil continuou sendo o país que mais assassinou pessoas trans, pelo 14º ano consecutivo. O alarmante dado foi levantado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), apresentando a atual situação das pessoas transgênero e evidenciando a necessidade de se desenvolver um olhar mais cuidadoso com essa parcela da sociedade.

Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra) lança anualmente um dossiê com informações sobre a situação, em âmbito nacional, da população trans e travesti. Imagem: divulgação

Frente a isso, travestis e transexuais femininas constituem um grupo de alta vulnerabilidade à morte violenta e prematura no Brasil, com uma expectativa de vida de 35 anos, enquanto a da população cisgênera (indivíduos cuja identidade de gênero corresponde ao seu sexo biológico) é de 75 anos. 

No contexto acreano, o dossiê da Antra afirma que não há dados sobre os números de pessoas trans ou travestis que sofreram alguma violência. Mas a ausência de dados não significa a ausência de vivências transexuais. 

Com consciência das dificuldades encontradas por esse grupo, o governo do Acre tem realizado algumas ações para mudar o cenário, principalmente no âmbito da saúde.

Promovendo qualidade de vida

Frente aos alarmantes números de violência nacional, por meio da Secretaria de Estado de Saúde (Sesacre), o governo pretende promover um atendimento mais humanizado, com ações como a realizada no Dia Internacional da Luta Contra a LGBTfobia, celebrado em 17 de maio. A iniciativa buscou sensibilizar, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), profissionais da área para o atendimento e assistência ao público LGBT+. Na ocasião, foi realizada a entrega da cartilha Dicas para uma Cultura de Acolhimento aos servidores

Em um trabalho contínuo, em novembro de 2023, médicos e demais profissionais da Atenção Básica de Rio Branco participaram de uma qualificação sobre a correta abordagem ao público LGBT+ nos serviços de saúde.

Cartilha Dicas para uma Cultura de Acolhimento. Foto: Odair Leal/Sesacre

Os profissionais das unidades básicas de saúde (UBS) Ary Rodrigues e Roney Meireles participaram da qualificação, que fez parte das ações que estão sendo desenvolvidas no estado, em atenção à portaria do Ministério da Saúde (MS) que trata sobre um atendimento em saúde de forma integral e plural para o público LGBT+. O objetivo foi implementar as políticas de equidade já preconizadas pelo SUS.

Após a qualificação promovida pela Sesacre, a Unidade de Referência em Atenção Primária (Urap) Ary Rodrigues, em Rio Branco, iniciou um novo fluxo de atendimento para o público LGBT+. A Urap é a porta de entrada para o atendimento humanizado voltado para a população trans e travesti. Da Urap, os pacientes são encaminhados para o Ambulatório de Atendimento Especializado (AAE), a Policlínica do Tucumã.

Novo fluxo de atendimento foi oficializado na Urap Ary Rodrigues, em Rio Branco. Foto: Maxmone Dias/Fundhacre

A Policlínica do Tucumã é a unidade de referência do Estado, com ambulatório de especialidades conforme preconiza a portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013, referente ao processo transexualizador. Os primeiros atendimentos se iniciaram no dia 16 de janeiro.

Resiliência na vivência

“Sou uma pessoa trans e sempre me vi dessa forma”, conta Ariel Silva, um homem trans de 45 anos atendido pelo ambulatório, que, ao longo de sua vivência, relata uma árdua jornada de luta contra preconceitos e resistência frente a violências. Nascido no interior do estado, em Sena Madureira, Ariel relata a dificuldade de expressar sua verdadeira identidade.

Por ser trans, Ariel já teve que “sair do armário” duas vezes: primeiramente como uma mulher lésbica e, após maior entendimento sobre sua real identidade, como um homem trans. Foto: Luan Martins/Sesacre

Os obstáculos encontrados por Ariel também refletem muitas das grandes dificuldades de pessoas trans em nossa sociedade, principalmente quando se trata de empregabilidade. 

Para se adequar à sociedade e ingressar no mercado de trabalho, Ariel muitas vezes teve que se vestir de maneira feminina, completamente em desacordo com o que percebia como sua real essência. “Me sentia enjaulado dentro do meu próprio corpo e, por conta de quem sou, demorei muito para conseguir um emprego”, conta.

Atualmente, trabalha como vigilante e sua profissão o coloca de frente com outro dilema enfrentado pela população trans: a disforia de gênero, condição em que a pessoa não se sente confortável com características masculinas ou femininas de seu corpo. Por conta de seu ofício, Ariel não pode deixar a barba crescer, sendo que esse recurso é reconhecido na sociedade como um artifício de reforço de masculinidade.

Por meio dos estudos, entretanto, Ariel vislumbra exercer uma profissão na área de contabilidade e, além de melhor qualificação profissional, deseja se vestir da maneira que se sente melhor. “Quero ter autonomia e ser livre de verdade. Por enquanto, não é a minha realidade, mas sempre busco me adaptar e tento me amar nos mínimos detalhes”, enfatiza.

Saúde humanizada e qualificada

Frente ao serviço promovido pelo ambulatório, Ariel demonstra gratidão: “Sou grato a cada passo que estou dando e feliz de ter essa possibilidade de um tratamento de saúde adequado e acompanhamento. Eu jamais pensei que antes de morrer teria um tratamento humanizado como esse”.

“Jamais pensei que antes de morrer eu iria fazer um tratamento correto, com acompanhamento médico. Sou muito grato”, diz Ariel Silva. Foto: Luan Martins/Sesacre

Além do serviço oferecido, Ariel demonstra gratidão a um dos profissionais que torna o seu tratamento realidade, Nakágima Sanllay Sales. “Ele está sempre à frente, sendo uma voz ativa para a nossa comunidade, angariando conquistas coletivas e, junto da visão da gestão do governador Gladson Cameli, estamos conseguindo ir além. Esse ambulatório é uma vitória muito grande”, avalia.

Sanllay é chefe do Núcleo de Populações Prioritárias e Vulneráveis da Secretaria de Estado de Saúde (Sesacre) e vice-presidente do Conselho Estadual LGBT+. 

Chefe do Núcleo de Populações Prioritárias e Vulneráveis da Sesacre, Nakágima Sanllay. Foto: Odair Leal/Sesacre

Trabalhando no núcleo desde o ano passado, ele e sua equipe buscam promover políticas públicas, criar projetos e qualificar profissionais da Atenção Primária, aprimorando o serviço oferecido e prezando pelo exercício da portaria de nº 2803 de 19 de novembro de 2013, que rege todo o processo transexualizador no âmbito do SUS.

Nakágima afirma que o ambulatório, que agora atende pessoas como Ariel Silva, está contemplado pelo Plano de Ação Empregabilidade para Pessoas LGBTQA+, apresentado na Audiência Pública Empregabilidade LGBTQIA+, realizada pelos ministérios públicos Federal (MPF), do Trabalho (MPT) e do Estado (MPAC), na sede do MPF, realizado em outubro passado. 

16ª Semana Acreana da Diversidade teve como objetivo discutir a empregabilidade LGBT+. Foto: Franklin Lima/Semulher

“Nós entendemos que não é só dar um caderno e uma caneta para a pessoa trans estudar, não é somente pôr a comida no prato, mas é também cuidar da saúde física e mental, se compreender e reconhecer. Então a saúde é primordial”, afirma Nakágima Sanllay.

“E o processo é muito dolorido, pois as pessoas não nos respeitam. Por isso, está no nosso plano estadual de saúde, para o segundo semestre de 2024, iniciar as qualificações no Juruá e em 2025 inaugurar o ambulatório trans também na regional, depois que a gente consolidar aqui na regional do Baixo Acre”, complementa.

PGE realizou reunião com secretarias de Estado para tratar da empregabilidade LGBT+, em setembro de 2023. Foto: Larissa Marinho/PGE Acre

Como vice-presidente do Conselho Estadual LGBT+, Nakágima Sanllay também afirma já ter iniciado uma conversa com a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública do Acre (Sejusp), para facilitar a realização de boletins de ocorrência em unidades de segurança. Com esse diálogo, será possível realizar qualificações a profissionais das delegacias, para melhorar o atendimento à população trans. 

Outra instituição governamental que se volta para promover um futuro melhor para pessoas trans é a Secretaria de Estado da Mulher (Semulher), que está trabalhando na pesquisa de mapeamento às mulheres lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis (LBT+), visando desenvolver políticas públicas específicas.

“Estamos mapeando esse público para que, não só no mês da visibilidade trans, mas em todos os meses, as políticas públicas de promoção o alcancem. Estamos desenvolvendo projetos voltados para as mulheres trans do estado, desenvolvemos cartilhas informativas acerca dessa temática, para que sejam afixados cartazes nos ônibus, banheiros. Teremos toda uma mobilização com o foco na conscientização da população. Temos toda uma programação voltada para a área. Mulheres merecem respeito, dignidade, educação, saúde e lazer, sejam elas cis ou trans”, frisa a secretária da Mulher, Márdhia El-Shawwa.

Para denunciar informações de transfobia e demais violações de direitos humanos, use o Disque 100. Foto: Odair Leal/Sesacre

Seja um aliado: dicas práticas para proceder

Além do trabalho desenvolvido pelo governo do Acre e demais instituições, é necessária a participação da sociedade no combate aos preconceitos e na integração das pessoas transexuais e travestis. Cidadãos empáticos e conscientes podem, com pequenas atitudes, fazer a diferença na vida de pessoas trans. 

– Use os pronomes, gêneros e nomes de preferência da pessoa. Em caso de dúvida, pergunte com educação;

– Evite perguntas invasivas sobre a sexualidade e genitália de pessoas trans;

– Esteja aberto a conviver com pessoas trans em seu cotidiano, com melhor ciência de suas vivências e questões;

– Repreenda pessoas que falarem de maneira desrespeitosa sobre pessoas trans;

– Denuncie qualquer tipo de violência dirigida a pessoas trans. É possível registrar boletins de ocorrência em qualquer delegacia, onde será realizado o recebimento e encaminhamento em casos de violência;

– Em caso de violência motivada por gênero, travestis, mulheres transexuais e mulheres intersexo também pode-se procurar a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) ou buscar atendimento por meio do Disque 180;

– Para denunciar informações de transfobia e demais violações de direitos humanos, use o serviço de discagem direta e gratuita disponível para todo o Brasil, que recebe denúncias e dissemina informações sobre direitos de grupos vulneráveis.

Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher fica localizada no Segundo Distrito de Rio Branco. Foto: Neto Lucena/Secom

Desafios e compromissos

Em um contexto marcado pela persistência de preconceitos e violências direcionadas à população trans, são essenciais as iniciativas do governo do Acre e demais instituições na promoção de uma sociedade mais inclusiva e acolhedora. 

O ambulatório de atendimento especializado e as ações implementadas pela Sesacre representam passos significativos rumo a uma saúde mais humanizada e qualificada para pessoas trans, como evidenciado pelo relato de Ariel Silva, que destaca a importância desses serviços em sua jornada.

Abertura dos primeiros atendimentos no ambulatório de especialidades voltado a pessoas transexuais no Acre. Foto: Luan Martins/Sesacre

No entanto, é fundamental que os esforços sejam ampliados e replicados em outras regiões do estado, visando à consolidação de uma abordagem integral, que abrange não apenas o aspecto clínico, mas também a empregabilidade, a educação e a segurança. Além das ações governamentais, a sociedade desempenha um papel fundamental como aliada na luta contra a discriminação. 

O respeito à identidade de gênero, o combate ao discurso desrespeitoso e a denúncia de violação de direitos são atitudes que todos podem adotar para construir um ambiente mais inclusivo e justo. O desafio persiste, mas o compromisso coletivo com a diversidade e a igualdade é a chave para transformar a realidade da população trans.

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