Memórias coletivas: o desafio de informar em meio ao caos e registrar a história pelo jornalismo

Sempre que me perguntam qual o maior desafio de ser jornalista, a resposta sempre está na ponta da língua: ter a responsabilidade de contar a história de alguém, afinal, quantos caracteres ou laudas são necessários para eternizar, pela escrita, a trajetória de alguém? Essa matemática é possível? Todas essas perguntas são as que me faço ao me sentar diante de um documento em branco, pronto para ser desenhado por linhas de uma testemunha ocular de algo ou de alguém.

Em tempos de crise, comunicar é uma das atividades primordiais. Vimos isso na pandemia, quando a dualidade das opiniões quanto à comunicação era acirrada, mas ela continuou imprescindível, ouso até dizer, para salvar vidas.

Como jornalista, aprendiz dessa profissão há 14 anos, vejo isso todos os dias. Mas, em cenários de crise, calamidade, as reflexões aumentam, assim como os sentimentos e, claro, a demanda de trabalho.

Sobre coberturas cansativas, tanto física como mentalmente, recordo da pandemia. O desgaste psicológico era constante. Em 19 de janeiro de 2021, enquanto fazíamos a cobertura dos primeiros vacinados contra a covid, a emoção tomava conta de todos na redação. Assistimos com os olhos atentos à vacinação. Na aplicação da primeira dose, aplaudimos e muitos se emocionaram enquanto registravam parte importante da história. Parecia final da Copa do Mundo.

Atualmente, estamos (incansáveis) na cobertura da enchente de nossos rios, o que já é um fenômeno esperado nos estudos e nas previsões dos especialistas. A mudança no clima também não é um desafio apenas do Acre, mas de todo o mundo.

E viver na Amazônia é lidar com eventos extremos – ora cheia, ora seca, e o que mais a natureza proporciona. O que não nos prepara para o desastre ambiental, ou pelo menos não o suficiente, para nos deixar confortáveis diante do esperado.

Esses dias, navegando pelas redes sociais, passei rápido por um vídeo de alguém que esbravejava: “O rio não invade as casas, as casas invadem o rio”. Me questionei sobre qual o espaço de explicações científicas neste momento, para famílias que estão tentando salvar pelo menos um colchão, enquanto olham, desoladas, as águas subirem.

Durante a cobertura em Xapuri, um abrigado, de andado apressado, afoito e olhar inquieto, me chamou para ver o box onde estavam as coisas que conseguiu salvar: um colchão, um tanquinho, uma trouxa de roupa. Passando pelas pequenas estruturas, vi caixas… Toda uma vida empilhada em caixas, cobertas por lonas pretas.

Mais uma vez, me questiono: é possível repassar aos outros o tamanho dessa dor? No trabalho, vi colegas em uma cobertura desgastante, insana, tudo para que a gente pudesse dar voz a essas pessoas e também transparência ao que, de fato, estava sendo feito.

É o registro do esforço para amenizar todos os impactos, os financeiros, mas, acima de tudo, o humano. São situações como essa que mexem com a dignidade humana.

E vi a união de várias mãos, seja no trabalho de logística, no apoio, em todas as frentes necessárias para atender uma demanda de mais de 120 mil pessoas atingidas. Dos gabinetes aos que entregam os kits ou levam esperança, uma só coisa nos movia: solidariedade.

Repórteres deixaram suas famílias, filhos e até suas casas, na iminência de também serem atingidas pela cheia, para fazer o seu trabalho e dar o seu melhor, assim como fizeram todos em uma grande ação humanitária, cada mão um elo de uma grande corrente.

Na falta das palavras, nossos fotógrafos captam os detalhes. Eu os chamo, com certo humor, de magos das imagens, afinal é a fotografia que congela parte da história.

Comunicar em tempos de crise é escrever a história, seja ela qual for. Àquele que cabe a responsabilidade de escrevê-la, também cabe a missão de mostrar os fatos e expor-se às críticas e aos desafios que essa profissão nos dá, mas também é o caminho para humanizar. Atrás de cada número, há uma vida, uma história.

E para isso serve a máxima: tem que amar o jornalismo. Duda Rangel, personagem criado pelos jornalistas Anderson e Emerson Couto, ao descrever a profissão, diz que jornalismo é devoção. Nos doamos para que os fatos sejam proporcionalmente divulgados. Independente de quem fica em casa nos esperando.

Em 2015, ano em que registramos a maior cheia histórica, eu estava na cobertura em Cruzeiro do Sul. E há três dias no Facebook, sim ainda tenho minha conta, justamente para visitar as lembranças guardadas ali, reli a postagem que fiz e intitulei: “O amor e a dor do jornalismo”.

No meio de um dia de cobertura, naquele ano em 3 de março, me deparei com um pai que havia perdido o filho nas águas do Rio Juruá. O pescador estava em busca do filho afogado havia dois dias. Lembro de ter visto as mãos enrugadas e os olhos vermelhos – por chorar pelo filho e por mergulhar de olho aberto em busca do corpo.

Coube a mim noticiar a maior tragédia humana, que vai contra a lei da natureza, o pai enterrar um filho. Lembro da voz embargada do pescador e ainda hoje sinto o nó na garganta. A mesma água que lhe dava o sustento havia tirado seu filho. Horas depois do meu encontro com ele, o corpo foi achado. O alento de dar um enterro digno ao filho o acalmou. E as águas do rio nunca são turvas e potentes no nosso chamado “verão amazônico”.

Cabe ao jornalista ser escritor dessas memórias coletivas de um grupo. Um fardo, que, como já escrevi em outros momentos, nos desperta sentimentos dúbios, de dádiva, mas também de infortúnio.

Saímos de nossas casas para escrever a história. Daqui a uns anos, no futuro, essas linhas serão o recurso para acessarmos o passado. No presente, são as ferramentas para transmitir informação e dados importantes e também um dos principais pilares da democracia: transparência.

Mais do que retratar, o jornalista precisa estar atento aos detalhes. Uma imagem fala mais do que uma sequência de linhas que preenchemos, na ânsia de fazer jus ao que vemos e apuramos. O cenário transmite o caos em que vivemos na calamidade. Mas, mesmo diante da dor de muitos, forma-se uma rede de amparo.

Mesmo alagados, vizinhos se unem para ajudar uns aos outros. É o que nos faz ser humano, no sentido mais amplo da palavra. Aos colegas jornalistas, todos que cumprem a missão de informar, seja qual for a situação, meu respeito e admiração por sermos incansáveis, mesmo quando somos atingidos também, e não há como não ser, uma vez que, também por sermos humanos, não ficamos indiferente a grandes tragédias.

Que a boa comunicação seja nossa meta todos os dias e que a ânsia de escrever histórias continue nos motivando, sem perder o feeling, como se diz no jornalismo, mas, acima de tudo, sem perder a humanidade e nosso compromisso com a verdade.

Termino esse texto usando uma frase de Fátima Bernardes que resume a nossa profissão, o que nos deixa vivos: “Existem dias em que o jornalismo registra fatos que, no futuro, serão contados nos livros – e serão guardados por gerações. Nesses dias, o que o jornalismo faz é escrever a história.”

Tácita Muniz é comunicóloga, repórter na Agência de Notícias do Acre; trabalhou 11 anos na editoria do Portal g1 no Acre, um dos maiores sites nacionais, encabeçando projetos envolvendo todos os estados. Também foi responsável por alimentar uma página com reportagens especiais sobre a Amazônia. É fã de rock, filmes e livros, além de aprendiz de escritora nas horas vagas

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