No quartel-general da Divisão do Sistema de Esgotamento Sanitário de Rio Branco são 6 horas de uma terça-feira. Na noite anterior, o governo do Estado do Acre decretou bandeira vermelha para evitar um colapso na saúde pública, fechando os serviços não essenciais por conta da alta incidência de casos de Covid-19 em todo o estado. No televisor de tela empoeirada sobre sacas de cimentos, o novo coronavírus é a manchete principal do programa de televisão preferido dos trabalhadores, e também o que mais cobra deles ao vivo.
A essa altura, os operários quebram o jejum com pãezinhos e café com leite fornecidos pelo órgão “antes de caírem no trecho”, como mesmos dizem quando estão prestes a sair para as obras nas ruas.
Na TV, o jornalista hoje não fez o costumeiro “Alô, Depasaaa!”, jargão doce na sua boca sempre que alguém liga para a emissora por alguma treta que só os homens do Departamento Estadual de Água e Saneamento, na sigla Depasa, conseguem resolver.
Os trabalhadores de uma das mais importantes autarquias estaduais estão acostumados com cobranças. Afinal, um dos grandes gargalos da administração pública estadual continua sendo o setor, que por anos, em gestões anteriores, deixou de receber investimentos. A boa notícia é que o governador Gladson Cameli corre contra o tempo para reverter essa situação, tornando o Departamento mais eficiente com ações pontuais e, claro, com o apoio imprescindível desses servidores no front do problema.
O coordenador da Divisão do Sistema de Esgotamento Sanitário, Joscicley da Silva Torres Araújo, afirma que as cobranças por meio da imprensa são frequentes. “É sempre assim que falam com a gente (risos). Mas estamos preparados para atender. Só do que precisamos é que as pessoas que recorrem aos jornalistas, primeiro façam o agendamento pelo 0800, pois nós temos que seguir o cronograma dos pedidos que chegam oficialmente”, explica o gestor, com a humildade e o sorriso que são peculiares também a toda a equipe.
Mais tarde, às 10 horas, Joscicley Araújo vai endossar o que disse acima. Em um trabalho de desobstrução de esgoto no bairro Vitória, alguém liga para o seu celular pessoal. Ele não atende. “Você conhece esse rapaz?”, pergunta ao repórter, mostrando a foto do interlocutor. “Ele quer que a gente vá atendê-lo. Mas não podemos fazer isso, porque temos que seguir o cronograma oficial da nossa gerência”.
O coordenador acabava de carimbar o seu atestado de integridade, coisa que já não existe mais no currículo de muitos adeptos ao jeitinho, à canetada, ao fura-fila.
Nesta reportagem, conheça o trabalho desses abnegados tarefeiros, que com dedicação e trabalho coletivo eficiente, todos os dias devolvem qualidade de vida a milhares de moradores de Rio Branco, desde aqueles mais distantes nas periferias, aos que residem nos bairros mais nobres da capital.
É em clima de disposição e de simplicidade que esses heróis anônimos trabalham, diariamente, mesmo correndo risco de contaminação por parasitas e micróbios em ambientes hostis, sem esmorecer jamais. Afinal, exercer uma das profissões mais perigosas para a saúde humana é preciso. E tudo para que você e a sua família mantenham a sua saúde preservada.
A REDE COMPLEXA DE DUTOS
Para compreender melhor a missão deles é preciso primeiro entender que o sistema de esgotamento sanitário de Rio Branco é formado por centenas de quilômetros de instalações no subsolo, em vielas, travessas, ruas e avenidas do centro e dos bairros periféricos, numa rede complexa de tubos que até hoje são um mistério para a engenharia hidráulica. Por alguns locais, passam intrincadas ramificações que desafiam o poder de solução dos técnicos atuais, dado ao período muito antigo de quando foram instaladas, ainda na década de 1970.
É o caso, por exemplo, da rede de esgoto no centro da cidade, formado por grandes tubos de ferro com ramificações que por muito tempo ainda continuarão parcialmente desconhecidas pelos técnicos do Depasa, por causa da complexidade do sistema e pela inexistência de uma planta de construção que possa norteá-los. A reportagem acompanhou três frentes de serviços em Rio Branco, uma no bairro Preventório, outra no bairro Vitória e a terceira no Recantos dos Buritis.
Essas manutenções preventivas e corretivas ocorrem diariamente, mobilizando um grande time de gestores, técnicos, operadores de estações, encanadores, eletricistas, motoristas e auxiliares de serviços gerais. A média de atendimento chega a pelo menos 200 por mês.
‘PONTE SAFENA’
Terça-feira, 2 de fevereiro. 6h30. Pelo menos 23 homens se preparam para atuar em três frentes de serviços simultaneamente. A primeira delas é o conserto de uma infiltração no cruzamento da rua Rio Grande do Sul com a rua Piauí, em frente ao Cristo do Zamir, no bairro Preventório, centro de Rio Branco. A segunda missão, no bairro Vitória, o esgoto jorra das caixas de esgotamento residenciais. Pelo menos três caixas de fossa séptica estão despejando centenas de litros de dejetos humanos na rua Alvorada. A terceira, idêntica à segunda, ocorre no Recantos dos Buritis, no Segundo Distrito.
O engenheiro civil Eder Alves Franco é o encarregado da equipe do Preventório. Já o técnico João Otaviano do Nascimento, considerado o ‘coringa’ do Depasa pelos colegas, por sua experiência de mais de 25 anos na empresa, estará com o time do bairro Vitória. Claudemar Nogueira é o responsável pelo serviço do Recanto dos Buritis, uma desobstrução de rede com o caminhão-tatuzão.
“Não sabemos ainda do que se trata aqui. Só que está dando infiltração de água no asfalto”, explica Franco. A retroescavadeira pilotada por Claudeildo Freire Pereira, o ‘Retêro’, como são chamados entre os colegas os operadores de máquina, rasga o asfalto como se fosse papel laminado de lata de leite em pó. A missão dele é encontrar o ponto exato de onde se origina a água que mina até a superfície, que vem deteriorando a camada asfáltica.
O cruzamento da Rio Grande do Sul com a Piauí é um dos mais movimentados da capital acreana. Mesmo um dia depois da vigência do decreto de restrição assinado pelo governador Gladson Cameli por conta da pandemia de Covid-19, o tráfego de veículos pelo local continua intenso, obrigando os trabalhadores a redobrar a atenção e evitar algum acidente.
Mal a máquina completa quatro conchadas de barro, o encanador Venilson Cunha do Nascimento, o Nilsinho, lança-se para dentro da cratera. Com uma pá na mão, ele tenta achar a ponta do tubo por onde escorre a água que causa infiltração. Talha o barro da parede de barro e, de cara, encontra um ninho de baratas. Os insetos, uma centena deles vivendo no subsolo, se esvoaçam como se vivessem um apocalipse atordoados pela luz da superfície e pelas pancadas da lâmina do instrumento que faz a colônia se dispersar rapidamente. Dois deles o atingem no rosto, à altura da máscara de proteção, mas Nilsinho nem os percebe tamanha é a concentração no serviço.
“Está aqui, bem aqui”, diz o trabalhador, levantando a cabeça em direção a Franco, o encarregado da equipe. Eles acabam de encontrar a origem da água que desencadeara a infiltração no asfalto, um tubo de drenagem que há décadas está enterrado sem ligação com a rede de esgoto. A origem do fluxo d’água que passa por dentro dele deve ter origem a uns 250 metros dali, às margens do rio Acre.
“Possivelmente, seja água do rio. Como o [rio] Acre está enchendo muito neste período, é muito provável que estejamos vendo a água do rio descer por esse tubo que, por motivo que nunca saberemos, terminou aqui sem uma ligação com a caixa de drenagem”, explica o encarregado da equipe, Eder Franco.
Preparada a ‘ponte safena’, o tubo novo é conectado à ‘boca’ da caixa de esgotamento, como numa cirurgia cardiovascular em que se liga uma veia a outra. Os homens do Depasa emendam o novo duto que continuará dando vazão à água, mas a partir de agora, para a galeria do esgoto da rua Piauí. Dali em diante a compactação com barro novo será feita pelo operador do ‘sapo’, como se chama o motor movido à gasolina que baterá o novo barro trazido no caminhão-caçamba.
Fim da cirurgia e a paciente chamada ‘Cidade’ passa bem. O enxerto de ‘pele’: o asfalto, agora, será por conta dos trabalhadores da prefeitura. O Município é avisado que a obra do Depasa terminou, para que providencie o recapeamento.
EXPERIÊNCIA CONTA, E MUITO
João Otaviano do Nascimento, 47 anos, tem 23 anos de casa. Embora apenas com o nível médio, ostenta o título de ‘engenheiro’ pelos colegas. Ele é uma unanimidade quando o assunto é rede de saneamento. Seu carisma e dedicação pelo trabalho de cuidar do sistema de esgotamento sanitário de Rio Branco, há mais de duas décadas, o credencia a único trabalhador a entender totalmente todos os meandros percorrido pelos dutos, sejam da água potável, sejam do esgoto, mais que os próprios engenheiros.
Nascimento começou ainda no antigo Serviço de Água e Esgoto de Rio Branco, o Saerb, autarquia pertencente à prefeitura até o início dos anos 2000. Ao longo da sua jornada, diz ter visto de tudo um pouco. Mas o que mais o impressionou foi ter de resgatar os restos mortais de um homem dentro de um poço, em 2005, em Senador Guiomard.
“Quando eu puxei a corda com o balde, vi que era um crânio humano. Aquelas imagens ficaram na minha cabeça até hoje. Meu Deus do Céu, até quando vai a maldade das pessoas! Não gosto nem de me lembrar, mas me lembro”.
João Otaviano do Nascimento
Ele carrega o mapa da rede do Depasa na cachola, dizem os colegas. Como o caminhoneiro da canção ‘Frete’, do Renato Teixeira, que conhece “cada palmo desse chão”, o seu dinâmico sistema mental permite saber onde existe cada artefato no subsolo da capital com precisão invejável. A diferença do carreteiro para o operário é que este último conhece cada palmo do que está embaixo do chão. “Guardo tudo aqui nessa mixaria de cabeça”, afirma, com modéstia. No fundo, no fundo, João Otaviano do Nascimento tem amor pelo que faz. E isso reverbera em competência. Interrompe a entrevista por conta própria para atender ao repórter fotográfico Pedro Devani.
“É pra foto da matéria? Então deixa eu me ajeitar pra sair bonito”, diz ele, colocando as mãos nos quadris e um pé à frente e outro atrás para a pose. “Falta só o perfume”, brinca.
Joscicley Araújo, o coordenador da turma, acaba lembrando de um fato curioso, em que três engenheiros pensavam como solucionar um problema de drenagem sem que tivessem muita dor de cabeça, nem intermináveis dias de trabalho.
“Foi quando o seu João cruzou os braços e ficou vendo aquela arrumação de longe. Eles falaram e falaram até que alguém alertou que tinha um cara entre nós que sabia como resolver. E se surpreenderam com o seu João, porque ele não só disse como fazer o trabalho como também se empenhou pra deixar tudo certinho”, se recorda o coordenador da Divisão do Sistema de Esgotamento Sanitário.
João orgulha-se das duas filhas e da esposa. A filha mais velha, de 23 anos, estuda História na Universidade Federal do Acre. “Vai ser professora, se Deus quiser. Já a mais nova vai no mesmo rumo, graças a Deus”. E os olhos brilham de tanta honradez no homem simples.
MARCELINO, O HERÓI DESCONHECIDO
No bairro Vitória, moradores da parte alta da rua Alvorada sofrem há quase um ano com o dejeto retornando e transbordando nas caixas de esgoto de suas casas. O sofrimento deles, no entanto, vai acabar. Entre os especialistas da vez para o serviço está Marcelino Inácio de Araújo, 46 anos, desde 2011 no Depasa.
Marcelino é do tipo que estufa o peito para contar as façanhas pelas quais já passou. Como um soldado de infantaria especial, que encara com profissionalismo e criatividade o que tem de fazer, já passou por situações embaraçosas, daquelas em que é preciso ter sangue no olho para encará-las.
Uma destas foi ter de entrar numa elevatória – edificação onde se acumula o esgoto de uma região, numa espécie de escala de viagem dos dejetos, por assim dizer -, até o seu destino final, as estações de tratamento de esgoto, chamadas só pela sigla de ETE. Ele e o colega foram incumbidos de retirar todo o material que ali constava, usando uma pá e roupas especiais para evitar contaminações.
“A coisa ficou braba porque tivemos que entrar com esgoto até os peitos”
Marcelino Inácio de Araújo, trabalhador do Depasa, tentando ser o mais discreto possível diante do cenário pesado e desolador narrado
Lidar com o mal cheiro, mesmo estando de máscaras, e não vomitar ou sentir náusea, não é para qualquer um. Bilhões de microrganismos a te rodear, ávidos por um desleixo para invadir o organismo disseminando algumas das piores doenças infectocontagiosas que possam existir, certamente, não faz desse um trabalho atraente para quem embrulha o estômago por qualquer coisinha.
No bairro Vitória, cortar parcialmente o tubo de esgoto entupido é agora a missão de Marcelino. Com um instrumento chamado de serra-copo, ele vai fazer uma incisão no cano do esgotamento da rua para que a equipe do tatuzão – o caminhão da desobstrução -, lance uma mangueira de jatos d’água na abertura, que viajará pelo interior do duto até alcançar a obstrução.
“A ideia é introduzir a mangueira até ela topar no ponto exato de onde está obstruído. Quando encontramos o que está impedindo o esgoto de seguir em frente, nós abrimos um novo buraco na rua neste ponto e eliminamos o problema”, explica João do Nascimento. Lembram dele lá em cima? O ‘Cara’ do Depasa, que aqui é o chefe da equipe.
O encanador Marcelino terá apenas pouco mais de 10 segundos para fazer a incisão e o operador do tatuzão inserir a mangueira. Como numa ferida no corpo humano, em que a veia é atingida causando uma hemorragia, assim é o esgotamento. Os dejetos dentro do duto aberto tratam logo de emergir com uma força descomunal, inundando rapidamente a cratera que havia sido feita. Nessas horas, não ser respingado por esgoto in natura é quase impossível.
“Sobe, Marcelino, sobe. Anda, vem. Me dá a mão”, grita um dos colegas. Em um susto, o amigo resgata o outro do buraco, antes que o fluido fétido, escuro e asqueroso atinja suas botas.
Dali a mais duas horas, o trabalho será concluído totalmente, com o fechamento das crateras. E assim se vai mais um dia na vida desses trabalhadores, heróis do subsolo, homens que zelam pela saúde de jovens como Brenda Santos da Silva, de 19 anos e o seu irmão, Francisco Bruno Nascimento da Silva, de 24 anos, ambos moradores da rua Alvorada.
“Nós agradecemos muito por isso. Eles [os trabalhadores] permitiram hoje que a gente possa viver mais feliz, sem mal cheiro e sem medo de ficar doente”, diz Brenda, em tom de agradecimento.
VALORIZAÇÃO
A presidente do Depasa, Waleska Dessotti, reconhece a importância da dedicação dos profissionais para levar os serviços do Depasa à população. “Entre os nossos trabalhadores há profissionais que têm toda uma vida dedicada ao Depasa. Um trabalho duro, mas que realizam com amor e o desejo de fazer sempre o melhor. Essas são as pessoas que fazem tudo acontecer”, pontua a presidente.
Além dos trabalhadores em campo, ações de valorização dos servidores internos, como por exemplo, as recentes ações de conscientização para a prevenção ao câncer de mama entre as mulheres, podem ser destacadas.
Ela afirma que em muito breve, a capital acreana terá quatro estações de tratamento, as chamadas ETEs (Estações de Tratamento de Esgoto), sendo duas em funcionamento, a ETE do São Francisco e a ETE da Conquista, e outras duas em construção.
Além disso, mais de 40 estações compactas, estruturadas para atender principalmente conjuntos habitacionais, e fossas-filtro completam o sistema que coleta esgotos de bairros como o Mocinha Magalhães, Calafate e Jequitibá.
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