Por Simone Pinheiro*
A memória não é racional, não é treinada, não é técnica. As memórias são constituídas por lembranças, sensações e sentimentos passados que ressurgem e são narrados não mais da forma pura, mas atravessados de experiências próprias e dos outros.
No sentido benjaminiano, a memória, ao ser narrada, não tem presente a intenção ou o interesse em reproduzir o “puro em si da coisa narrada como uma informação, um relatório ou qualquer aspecto técnico. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele”.
Nessa perspectiva, a história de vida de Irene Avelino Pinheiro (minha avó) pode ser narrada pelo viés das memórias de sua neta, por meio dos momentos em que fragmentos da barra de açúcar eram quebrados, dando espaço para contar e recontar trajetórias da sua vida. Esse alimento, até meados da década de oitenta, chegava ao Acre em forma de barras, enroladas em papel cinza. Para ser consumido, era necessário proceder à quebra para depois fazer seu bom uso. E foi durante essa quebradura doce que as minhas memórias acerca de minha avó foram sendo desenhadas.
Em paralelo à ação da quebra do bloco de doce, ela ia contando a história de sua vida no seringal, como chegou à cidade, a fuga de um marido abusivo, a casa tomada por especuladores imobiliários.
As horas da quebra da barra de açúcar se materializavam em momentos sacerdotais e ritualizados. O horário, sempre o mesmo para tal tarefa, a mesma bacia, martelo e o bloco a ser quebrado. Momentos de suma importância nas informações ali contadas e ressignificadas. Eu e minha avó passeávamos nas suas histórias, enquanto ela utilizava as etapas para utilização do açúcar. A cada partícula de doce despedaçado, provinha alimento para a vida e para adoçar a alma.
Enquanto a auxiliava, viajava em suas narrativas, despertando minhas curiosidades de menina. Os momentos que trabalhou no seringal, os acontecimentos da morte de sua mãe, a separação traumática, a perda dos filhos e o nascimento de outros têm o doce e o amargo na trama de vários percursos que significaram viver na região Amazônica.
As imagens de minha avó sentada no chão com um martelo na mão quebrando o açúcar são elementos presentes em minha memória. A cada batida uma narrativa, o doce do açúcar era incapaz de adoçar algumas de suas palavras pela carga de sofrimento que ainda pesava em suas costas. Enquanto a barra diminuía, ela falava de seres encantados, fugas noturnas, orações, danças, açoitamentos, trabalho, corte da seringa. O mundo branco e doce do açúcar me apresentava o universo de Irene Avelino Pinheiro na década de 30.
Todas as sensações advindas de suas histórias me fizeram traçar um panorama da mulher ao meu lado. Irene Avelino Pinheiro, pobre, seringueira, filha, mãe, esposa, avó. Com informações tão valiosas que não seguem uma lógica linear, não têm batidas do relógio, nem folhas de calendário, nos transportamos ao Seringal Guanabara, localizado na região de Sena Madureira, ao longo do Rio Purus. Seguindo os caminhos pela minha avó delineados, vejo uma menina, de porte pequeno, cabelos e olhos escuros, se transformando em uma mulher de forma forçada a enfrentar os problemas do seu tempo. Naquele momento, observava suas mãos enrugadas, mas estavam agora, mais firmes e fortes.
Essa mulher com mais idade, a mulher presente na minha infância, de olhos fundos e cabelos brancos, também falava e agradecia pela fartura de alimentos na cidade, visto que, no seringal, diversas vezes faltavam itens básicos para alimentar-se. As refeições eram à base de farinha, carne de caça, café feito com garapa de cana-de-açúcar, frituras com banha de porco, que servia também para o cabelo, na falta do creme, ou como remédio, na utilização para sarar feridas.
A família produzia bastante borracha, então o pai tinha permissão para criar alguns animais e plantar cana, macaxeira e feijão. Irene contava com orgulho sobre as madrugadas em que saía de casa para fazer o corte da seringa. Saía ainda de madrugada, por volta das três horas pelos varadouros, ela, os irmãos e o pai, equipados com suas porongas. Ela atribuía seus problemas na visão às horas de defumação do látex, mas falava orgulhosa que aos 12 anos aprendeu a manusear armas de fogo.
Os momentos mais calmos de sua vida no seringal eram quando nasciam seus irmãos; nesses acontecimentos, ela ficava em casa para auxiliar nos dias de resguardo da mãe. Período em que a menina lavava roupa, cozinhava, cuidava da higiene da mãe e dos recém-nascidos.
Dona de uma forte expressão oral, de mãos calejadas e de tantas lembranças, me encantava com suas histórias de encantados (curupira, boto, rasga-mortalha). Mulher de grande fé, guardava o segredo de orações que cortava tempestades, curava dores, “fechava” corpos, orações para se ter um bom parto, acalmava os homens, resgatava amores. Tinha devoção pelas “almas”, eram as guardiãs que guiavam seus passos. Toda segunda acendia uma libra de velas e rezava para seus protetores. Sentava no sofá de sua humilde casa na cidade e rezava um terço pelos vários amigos, filhos e irmãos que deixara enterrados no seringal.
Proprietária de um rosário branco que ficava preso ao cabide de prego da porta branca do quarto de uma casa de madeira simples, localizada na cidade de Rio Branco, conquistada por conta de uma pensão recebida de seu pai.
Os passos de vida desta mulher revelam sonhos, frustrações, realizações da vida do presente, neste caso eu. Todos os momentos em que eu e minha vó estivemos juntas, longos cordões de experiências foram sendo costurados e amarrados em mim. A cada encontro novas histórias, e as que mais me envolviam eram a dos encantados da floresta.
E foi numa noite de lua cheia, enquanto eu e minha vó aguardávamos o retorno da luz elétrica, na década de 80, as termoelétricas, geradoras de eletricidade alimentadas de óleo diesel, no inverno Amazônico, economizavam o produto gerador, uma vez que nessa época a estrada que ligava o Acre a Rondônia ficava intrafegável, daí a necessidade se impunha, reduzindo o consumo e assim, faltava por dias o combustível. Momento propício para ouvir suas histórias.
Não me lembro a data, mas lembro bem de que era noite de lua cheia e a claridade entrava pela janela, sobre a mesa da cozinha havia uma vela e no fogão uma panela com banana comprida, era o momento de preparar a janta. Nessa noite, ela começou a falar dos acontecimentos da noite em que dançou com o Boto durante uma festa na sede do Barracão, à margem do Rio Purus. Então ela narra:
Ele era bonito. Jovem vestido com um paletó branco, chapéu de aba, também branco. O sanfoneiro tocava bem enquanto as moças esperavam ser tiradas para dançar. Eu ficava ao lado da minha mãe, meu pai ficava no terreiro bebendo e conversando com os homens. No salão, aquele moço bonito dançava com as moças, mas eu não podia ir lá, porque se não meu pai me matava de peia. A lua já estava no meio do céu, quando ele me tirou para dançar. Dançava tão bem, fia! Dançava e era leve, tinha olhos encantadores, não queria largar. Mas o sanfoneiro parou e logo os pares deixaram o salão e o meu par me disse: Adeus! Eu era danada, não tinha medo de nada. Corri atrás dele, dai ele desceu o barranco do rio e lá tirou a roupa e mergulhou no rio, a lua clara me deixou ver tudo . Ele virou um boto e foi embora. Eu tinha dançado com o Boto. (Irene Avelino Pinheiro).
Em seu relato há presença de elementos que se cruzam entre a ficção e a realidade. As festas nos barracões durante o ciclo da borracha, a disposição dos corpos no salão, os músicos, as moças vigiadas e cobiçadas pelos homens que procuravam encontrar um amor, casar, ou simplesmente, naqueles momentos de diversão, fugir da realidade tão perversa, marcada pela força do trabalho.
Confira o artigo completo: Memórias: Quebra do Açúcar
*Simone da Silva Pinheiro é professora na Escola Estadual Luíza Batista de Souza e doutoranda do programa de pós-graduação em Letras: linguagem e identidade, da Universidade Federal do Acre