As curvas do rio da vida

“O rio, sempre o rio, unido ao homem, em associação quase
mística, o que pode comportar a transposição da máxima
de Heródoto para os condados amazônicos, onde a vida chega a ser,
até certo ponto, uma dádiva do rio, e a água uma espécie
de fiador dos destinos humanos. Veias do sangue da planície, caminho
natural dos descobridores, farnel do pobre e do rico, determinante das temperaturas
e dos fenômenos atmosféricos, amados, odiados, louvados, amaldiçoados,
os rios são a fonte perene do progresso, pois sem ele o vale se estiolaria
no vazio inexpressivo dos desertos. Esses oásis fabulosos tornaram possível
a conquista da terra e asseguraram a presença humana, embelezaram a paisagem,
fazem girar a civilização – comandam a vida no anfiteatro amazônico”.

(TOCANTINS, Leandro, 2001, p.278)

 

Já tem mais de vinte anos que deixei as cabeceiras do rio Tarauacá para morar na capital Rio Branco. E toda vez que passo rapidamente por Tarauacá sinto uma melancolia profunda, causada pelo afastamento da minha terra natal. Saudade de tudo que vivi durante a infância.

Em Tarauacá aprendi andar de bicicleta, e foi lá também que peguei uma queda de ralar até o queixo. No Rio Tarauacá tomei muito banho, comi muita areia, pesquei muito peixe com meu pai, andei de canoa, batelão e fui sem dúvida muito feliz. Olhando calmamente pra ele na semana passada, nas lembranças da infância tinha a impressão de que o rio era maior. Mais largo, com mais água. Sentimento bem típico da infância. Pensei no meu pai e em tudo o que aquele local representava para ele. Ali viveu intensamente. Pescou, cortou madeira, vendeu, comprou, construiu comércio, constituiu família, filhos. Quanto mais olhava, parecia me ver correndo ali com ele ao meu lado. Como fomos felizes ali. Aquele rio era a vida dele!

O sentimento de saudade invadiu a minha alma e por um instante eu queria voltar a viver tudo aquilo. Eu nem sabia que tinha esse sentimento todo por um rio. Aquela paisagem despertou o que eu não sabia que tinha. Precisei abandonar o olhar e seguir meu caminho rumo a Cruzeiro do Sul.

O longo percurso terrestre me fez pensar em tudo o que me aconteceu de bom naquele lugar. E me fez refletir sobre o que eu poderia ter feito se lá tivesse construído a minha vida. E repensei principalmente o que eu devo fazer para transferir esse sentimento de amor por aquele rio aos meus filhos. Muita coisa mudou desde então… Mas algo deve permanecer: preciso levar meus filhos para viver um pouquinho do que vivi. E me perguntei o por que não o fiz até hoje.

Cruzeiro do Sul brilhou no final da estrada! E continua linda com suas águas negras, cercada por monumentos históricos que retratam um Acre antigo e ao mesmo tempo atual. Terra de gente hospitaleira, trabalhadora e de boa comida. A agricultura é braço direito na economia local. Inclui-se nessa economia a larga escala de produção de farinha de mandioca.

Mas, voltando ao tema do rio, o Juruá é majestoso, com suas margens sempre cheias de gente trabalhando. Vendendo, trocando produtos por outros e agricultores levando e trazendo a fartura para os seringais. A praia lotada no domingo não nega o amor do seu povo pelas águas juruaenses.

Ao seguir adiante, nos deparamos com o deslumbre e a magia de águas ainda mais escuras, ainda em Cruzeiro do Sul. Coberto por uma fauna espetacular e uma floresta exuberante, cheio de árvores centenárias. Esse é o rio Croa.

Quando vi aquele verde incrível me perguntei: o que eu fiz todo esse tempo que não havia vindo aqui antes? A paisagem é exuberante e recorri meu pensamento aos escritos das impressões que Leandro Tocantins traz no livro “O rio comanda a vida”, em que narra os modos de vida do homem amazônico. A obra foi escrita no ano de 1952 e é considerada um verdadeiro clássico no que se refere à região amazônica, onde os rios assumem uma importância fundamental para a sobrevivência das populações que vivem à sua margem.

E, de fato, os rios comandam a vida do homem amazônico. Comandam a vida também dos homens amazônicos que vivem nas cidades. E viver tamanha experiência diante da magnitude desses rios me fez perceber sentimentos fortes. Um carinho indescritível por toda essa floresta que se mantém firme e de pé.

Muito difícil descrever tantos sentimentos. É saudade, nostalgia, é querer voltar no tempo e não poder. Saí com o coração cheio de esperança de um dia poder voltar. Espero que nas curvas do rio e da vida, eu volte em breve.

 

 

Nayara Lessa é graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Instituto de Ensino Superior do Acre e mestra em Letras pela Universidade Federal do Acre. Atualmente compõe a assessoria de Comunicação do Governo do Estado do Acre. 

 

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