Equilibra-se na pequena canoa, um pé na proa, o outro no convés do barquinho, prende a cordinha da tarrafa na mão, organiza as malhas, prende no dente, organiza mais uma vez e… chuá… solta aquele belo e redondinho lance que retorna repleto de mandins, revoltos pela captura.
É piracema no Juruá!
A cena se repete todos os anos, pelas margens do Rio Juruá. Ah! E por falar em margens, se há uma coisa que o juruanse jamais esquece e de longe reconhece são as sinuosas curvas desse rio de águas barrentas. Mas, continuemos a navegação pelo causo.
O causo é que são diversos os causos que ocorrem nessa época “pelas bandas do Juruá”. É a fulana que “se encantou”, o ciclano que encheu a canoa de mandim, e o beltrano que foi perseguido pelo “peixe que come gente”!
E tem mais, existe até o mito de como se formaram as curvas do Rio Juruá, na disputa entre dois irmãos jacarés. E, ainda, de que embaixo da Catedral Nossa Senhora da Glória, padroeira da cidade das ladeiras, Cruzeiro do Sul, haveria uma cobra grande, esperando apenas o momento certo para aparecer.
O imaginário desse povo é algo tão genuíno que é impossível não se deixar levar e acreditar na oralidade das histórias. E é engraçado como certas coisas, com o passar dos anos, vão se tornando esquecidas, perdidas, mas, aos olhos atentos, ganham brilho.
Nos barrancos, as crianças brincam, pulam, pintam e bordam na lama que se forma. Escorregam. Mergulham. Mais receosos, os turistas observam de longe os cardumes, os ribeirinhos e “os da cidade” é que se aventuram a jogar a tarrafa.
Nascida no Amazonas, na margem de um rio, acreana do pé rachado por escolha, e criada em uma das curvas do Juruá, testemunhei durante anos essas piracemas, e o ensaio das canoas que se aglomeram de margem à margem, formando um manto sobre as águas, e afirmo: essa é a cena mais linda, pirografada na memória. As novas cenas já não são como antes, pois é necessário, também, proteger a natureza da caça predatória.
Mas ainda assim, depois da pescaria… Opa! Pescaria não. Lá é “mariscar”.
Continuemos.
Depois do “marisco” a família toda se reúne para comer o peixe frito, sequinho que dá gosto! E o assunto? Ah! O assunto sempre será a tarde “pegando mandim”, o fulano, o ciclano e o beltrano. Os mitos e o imaginário amazônico. E é assim que o causo vai sobrevivendo… Até que não reste mais quem tenha interesse em escutar e “mariscar” os peixes e, pegar, nas malhas das tarrafas da memória, as histórias.
Mas, menino, deixa eu te contar aqui, num linguajar arrastado, que a cultura sempre arranja um jeitinho de sobreviver, é um conhecimento inato. De maneira instintiva, o homem, sempre sabe a hora de jogar a tarrafa, de subir o rio, de procriar e não deixar a espécie morrer.
É piracema no Juruá, maninho, e tu já ouviu dizer por aí que “não se pode nadar contra a correnteza?”
Marrapaz, é porque tu não sabe o que esses peixinhos fazem! Tu acredita que nessa época eles sobem o rio? Isso mesmo! Eles nadam contra a correnteza, menino! E mais, tá? Todo esse esforço faz com que eles produzam ainda mais hormônios para dar continuidade à espécie, tá?
Por essa tu não esperava, né, cabra? Fica se fazendo aí de mole, fica dificultando as coisas e nem olha para o que acontece na natureza?
É, o homem é um bicho muito esquisito mesmo, pensa tanto que complica tudo!
Mas, aproveita a piracema, menino! Olha que um mandinzinho frito com uma farinhazinha, hein! Huuum…
Mas então, vou-me embora, né? Inté!
Taís Nascimento é jornalista e trabalha na Assessoria de Comunicação da Secretaria de Estado de Saúde do Acre