Brava Gente – Maqueson, nossa avis rara

“A floresta é fonte de inspiração ilimitada, é pai, é mãe, é pão, é vida”, diz Maqueson (Foto: Arison Jardim/Secom)

“A floresta é fonte de inspiração ilimitada, é pai, é mãe, é pão, é vida”, diz Maqueson (Foto: Arison Jardim/Secom)

Quem já teve oportunidade de conhecer o plenário da Assembleia Legislativa do Acre viu aquela que é, provavelmente, a maior obra de marchetaria do mundo: um painel de 39 metros de comprimento por dois de altura, retratando a Revolução Acreana. Diante da grandiosidade e beleza expostas, naturalmente emerge a pergunta: quem fez isso?

Quem teve a coragem de se lançar a uma tarefa de tal magnitude? Quem concebeu uma obra assim? Quem a executou? Quem produziu tanta beleza, com tamanho bom gosto e maestria?

Um cidadão muito particular: Maqueson Pereira da Silva.

Ao se conhecer a história do homem nascido há 54 anos no Seringal Flora, no município acreano de Porto Walter (a 632 quilômetros de Rio Branco), tem-se a impressão de que todas as experiências vividas por ele foram detalhadamente arquitetadas para que se tornasse o grande artista da marchetaria que é.

A infância e a adolescência vividas na floresta lhe deram intimidade com a fauna e a flora, especialmente com as árvores: espécies, colorações, padronagens, texturas. Com o pai aprendeu a construir barcos, sendo assim iniciado na carpintaria e marcenaria. O avô o alfabetizou e lhe contou histórias, estimulando sua curiosidade pelo conhecimento formal e o prazer da imaginação.

Com 18 anos, o moço que não conhecia nem Cruzeiro do Sul nem automóvel, foi, de avião, para São Paulo. E ficou chocado ao botar os olhos na selva de pedra.

Dali, seguiu para estudar num seminário no interior de Santa Catarina. Na fria cidade de Salete, conviveu, no Instituto Liebermann, com uma população de origem alemã.

Era 1977. Foi nesse momento que amargou a distância da família e do seu habitat, provou de invernos rigorosos, da alimentação estranha ao seu paladar e de modos de proceder diferentes dos seus. Enfrentava, ainda, uma caminhada diária de cinco quilômetros, para assistir às aulas: filosofia, teologia, alemão…

Experimentou, também, uma das situações mais dolorosas que um ser humano pode atravessar: o preconceito. Para os colegas, ele era o nordestino que não sabia de nada. Não adiantava dizer que o Acre ficava na Região Norte: “É tudo a mesma coisa”, dizia a voz da ignorância pela boca dos incautos, que nem de longe desconfiavam quão diversas são as paisagens do que classificavam como igual e quão admirável é a riqueza que caracteriza cada uma dessas culturas.

“A maneira como o sol incide sobre as árvores gera a coloração da madeira”, revela Maqueson (Foto: Onofre Brito)

“A maneira como o sol incide sobre as árvores gera a coloração da madeira”, revela Maqueson (Foto: Onofre Brito)

Diante de tantos desafios, sobretudo o de atravessar o abismo entre a tradição amazônida e a germânica, muita gente não pestanejaria em voltar correndo para o conforto do que é conhecido. Não Maqueson.

O caboclo, que era cria da floresta, foi feito de uma fibra extraordinária e encontrou, dentro de si, a capacidade de suportar, de se adaptar e de superar as situações adversas. “Porque eu era guiado por um ideal, uma necessidade profunda de aprender”, explica. Como tinha domínio das disciplinas elementares e muita determinação de aprender, com o tempo passou a ser respeitado entre os companheiros. E alçou o posto de monitor de classe.

Foi iniciado na filosofia, arte, botânica. Também principiou nas lides da marchetaria, ou a arte de embutir madeiras coloridas em superfícies também de madeira, compondo motivos. A técnica surgiu três mil anos antes de Cristo, foi praticada pelos egípcios antigos e teve seu apogeu na Europa, na segunda metade do Século XVI.

Em 82, foi para São Paulo estudar filosofia, preparando-se para a vida sacerdotal. Mas, a um ano da ordenação, desistiu de ser padre. “Eu queria ver o mundo de modo diferente”, conta. E viu. Viajou pelo mundo e conheceu até as Muralhas da China, um sonho antigo.

Voltou para o Acre em 86 e, em Cruzeiro do Sul, mergulhou fundo na marchetaria, orientado por Herbert Douteil, o “Padre Heriberto”, seu amigo até hoje. A imersão foi exaustiva: doze horas diárias de labuta, cada execução passava por duas ou três provas antes da versão final. O professor Heriberto foi extremamente exigente e, ao fim de quatro longos anos de lições, anunciou: “Você já pode caminhar sozinho”.

Num Sábado de Aleluia Maqueson começou a namorar Linda. Casaram-se em 89 e tiveram três filhas.

Por intermediação do Padre Heriberto, que também soube ser generoso, Maqueson teve a chance de estudar marchetaria na Alemanha. Numa formidável fusão de saberes, a pulsação vibrante da Amazônia encontrou a sofisticação do espírito alemão. O convívio foi tão intenso que o artista acreano absorveu o acento e o gestual dos alemães. Mas preservou a pureza cabocla, felizmente.

Depois estudou também na Suíça. E lapidou ainda mais o seu talento.

Desde 95 estabeleceu-se em Cruzeiro do Sul com a família e, seis anos após o retorno, criou, em sua oficina, a Escola de Marchetaria do Acre, no bairro do Formoso. Tem 26 funcionários e avalia que cerca de uma centena de alunos já passaram pela instituição, especialmente filhos das comunidades ribeirinhas.

Com os moradores do Seringal Flora, que, para seu abalo, reencontrou devastado, Maqueson também deu início a um projeto de reflorestamento. Juntos, já plantaram mais de 30 mil árvores.

Dentro do Seringal, implanta uma espécie de posto avançado de estudos, com acomodação para receber acadêmicos de biologia, agronomia, engenharia florestal e das ciências que pesquisem a floresta, sobretudo o seu uso sustentável.

A própria marchetaria, segundo ele, permite esse relacionamento respeitoso com sua fonte de matéria-prima. E ensina: “Quanto mais retorcidos os galhos, troncos e raízes, melhor o efeito que geram”.

Agora um artista reconhecido internacionalmente pela qualidade de sua obra e por ter desenvolvido um estilo próprio em marchetaria, Maqueson já conquistou a sua clientela no mundo todo. Seja nas peças mais singelas ou nos imensos painéis, como os dois que decoram também o auditório do Teatro Plácido de Castro, em Rio Branco, ele derrama, em suas imagens, baldes de luz, sombra, profundidade, cores, perspectiva, proporções e apurado senso estético, com todo o domínio técnico que edificou ao longo da vida.

E, assim como a arte de Maqueson enche os olhos, sua presença tem o poder de emocionar o interlocutor atento. Mas é preciso silenciar internamente para entrar em ressonância com a nobreza dessa criatura, que não se impõe agressivamente, mas também não se esconde. Discorre sobre filosofia, teologia, história da arte, arquitetura e uma infinidade de temas com naturalidade e encantamento. Como menino que brinca na mata, Maqueson, longe de demonstrar qualquer afetação, revela, em seu discurso, o entusiasmo com a aventura de conhecer: “A floresta é fonte de inspiração ilimitada, é pai, é mãe, é pão, é vida”.

Em certos momentos, parece ter a graça e a leveza de um pássaro, avis rara acreana que de fato é. Da qual a gente só quer ouvir o maravilhoso canto, que narra, com muita arte, a floresta soberana, variadas

Detalhe do painel "A expedição dos poetas", produzido por Maqueson para o plenário da Aleac (Foto: Gleilson Miranda/Secom)
Detalhe do painel "A expedição dos poetas", produzido por Maqueson para o plenário da Aleac (Foto: Gleilson Miranda/Secom)

Detalhe do painel “A expedição dos Poetas”, produzido por Maqueson para o plenário da Aleac (Foto: Gleilson Miranda/Secom)

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