Uma estrada e seus muitos caminhos

Nos tempos de maior sofrimento, a esperança do seringueiro  era riscada junto com as bandeiras. “Ele dizia: daqui vou tirar meu saldo para voltar para o nordeste. Hoje, o sonho é permanecer no seringal

seringueiro_1.jpg Os extrativistas guardam mais que uma relação de trabalho e renda com as estradas de seringa. Estudadas pelos vários olhares dos cientistas, as estradas têm uma simbologia específica para os que com ela lidam no dia a dia de modo que a eles cabe a melhor definição do que pode ser considerado um mundo extra no universo dos seringais. Uma estrada abriga, segundo estimativa da Fundação de Tecnologia do Acre (Funtac), entre 65 e 196 árvores de seringueira, de onde se retira o látex com se fabrica uma infinidade de produtos automotivos, hospitalares e de uso geral.  Há variações nos números.

 

Manejada há mais de um século, a estrada  só  recentemente está  reconhecida como unidade  medida agrária.  “As estradas de seringueira ou seringa, por um lado, se são criação dos seringais e inexistentes sob a ótica da agrimensura, é um fato histórico, como bem descreveu Euclides da Cunha, e eram rigorosamente respeitadas pelos proprietários da época: todos tinham ciência onde terminava uma estrada de seringa e começava outra, onde findava um seringal e iniciava-se outro (…)”, disse o juiz Jair Facundes, da 3ª Vara da Justiça Federal. E completou, definindo a medida da estrada: “Diante da fundada dúvida, é razoável o uso de uma medida intermediária, não próxima do mínimo nem do máximo: 150 hectares por estradas de seringa”. A sentença foi proferida em 27 de março de 2006 no processo de indenização ao seringal 15 de Novembro, incorporado ao Parque Nacional da Serra do Divisor. Nela, Facundes cita texto de 1906 de Euclides da Cunha, narrando acerca da originalidade da estrada de seringa como unidade de medida.

 

Há décadas utiliza-se a estrada como medida  mas essa referência não é  tudo no universo dos seringueiros.  “Na estrada, o homem vive o produto da Natureza”, diz Manoel Lima, sindicalista que cortou seringa durante 22 anos na região da Estrada Transacreana, em Rio Branco. Lima evoca uma relação de intimidade pouco vista entre o seringueiro e suas estradas –e cita velhas histórias em Budego, Três Buracos e Varadouro, nomes das estradas que possuiu na Transacreana: “Nelas, ninguém mexe, ninguém faz o que eu faço”.

 

A simbiose é algo marcante marcante. O seringueiro, de acordo com a antropóloga Manuela Cunha em seu Estudo Natural da Diversidade Lingüística, é capaz de reconhecer e se relacionar com cada árvore individualmente. Os termos recolhidos por Eliza Costa para o artigo de Manuela mostram melhor o fenômeno do reconhecimento:  “(…)Aí tem aquela grossinha, aquela cheia de nó, a da jabota,  que dá duas tigelas. Aí é a manga: tem a que dá muito leite mesmo. Aí é aquela manguinha bem curtinha; aí desce direto; aí volta: vem para aquela do caroço; aí desce para cá; aquela da beira do igarapezinho; vem para a vermelha; aí sobe um pouquinho; aquela fininha de toco; Aí vem para cá, aquela tortinha; aquela vacona (aquela boa, é?) (…).

Os espaços ocupados pelo seringueiro –praticamente tudo no contexto da estrada –não encontram referências visíveis. Sendo assim, o seringueiro atribui nomes e desenhos a esses espaços lançando mão de designações que podem ser comuns a todos, incluindo o próprio corpo.   

Mesmo abandonando a estrada, identificação de seringueiro permanece 

A antropóloga Daniela Marchesi, da Universidade de São Paulo, estudou a ocupação espacial dos seringais sob vários ângulos e descobriu, além da questão das nomenclaturas comuns, que mesmo deixando a extração o trabalhador mantém identificando a si e aos conhecidos como seringueiro.

 
Daniela publicou pela Editora da Universidade Federal do Acre o livro Eu Entro Pela Perna Direita – Espaço, Representação e Identidade do Seringueiro no Acre, tese defendida em 1999 na Universidade de Siena, na Itália, onde  indaga se esse e outros  conceitos estão sendo compreendidos pelos projetos econômicos em implantação nas terras onde vive a população tratada no estudo. Na capa, a pesquisadora usa gravura de Hélio Melo sobre os vários caminhos das estradas.
 

“As pessoas devem zelar pela nossa mãe”

 

O sindicalista Manoel Lima diz que a estrada é “mãe-leite” dos seringueiros. As duas palavras, mãe e leite, são freqüentes no vocabulário dos seringueiros. “As pessoas devem zelar pela estrada, que é nossa mãe”, disse Gilberlande Ferreira de Oliveira, morador da Colocação Prato II, no Seringal Nazaré, na Reserva Extrativista Chico Mendes.  Ele vê nas tecnologias de recuperação de terra degradada, como o cultivo da mucuna, instrumentos de conservação da floresta –algo que resulta na preservação das estradas.

 
“A estrada de seringa não é só uma estrada de seringueiras. Ela tem vários caminhos. Tem muita coisa nela”, confirma seu irmão, Gilbervaldo Ferreira de Oliveira, que vive na Colocação Prato II.  Citam, por exemplo, que numa estrada de seringa, por assim entender que é um abrigo de biodiversidade, encontram-se alimentos e outras fontes de renda, como a castanha e o açaí. 

Sonhos e reflexões de ontem e hoje 

A estrada representa ao longo dos anos o caminho da vida, espaço de profundas reflexões. “Ali, o seringueiro pensa na vida, na família e na floresta”, observa Anselmo Forneck, ambientalista, superintendente do Ibama no Acre.

 
Durante décadas, na imensidão e solidão da mata,  o seringueiro fez da estrada o caminho dos sonhos. Nos tempos de maior sofrimento, a esperança era riscada junto com as bandeiras.  “Ele dizia: daqui vou tirar meu saldo para voltar para o nordeste. Hoje, o sonho é permanecer no seringal”, completa Forneck.
 
Texto: Edmilson Ferreira
Fotos: Gleilson Miranda

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