Três mulheres, três sinais

O sinal vermelho é o momento mais aguardado por Heloísa, Jéssica e Dolores que estão nos semáforos há mais de dois anos. A primeira vez que as vi foi em meados de 2019. Sempre naquele 1 minuto do sinal. Heloísa é mãe de Jéssica e filha de Dolores . Três  gerações, três mulheres indígenas Warao, que perambulam estrategicamente pelas ruas  rio-branquenses. Heloísa, 38, posiciona-se entre a Avenida Ceará e a Rua Pernambuco, em frente a uma concessionária de veículos. Jéssica, 19,  se encontra  no mesmo local, porém um pouco mais a frente. Dolores sempre fica no cruzamento da Avenida Ceará com a Floriano Peixoto, que possui quatro sinais.

A Avenida Ceará pode ser considerada uma das ou a avenida mais conhecida do estado. Ela é a rota central para bairros como Estação Experimental, Floresta, Manoel Julião, dentre outros. Há mais de 3 anos e meio ela se tornou uma vitrine que é assistida por meio da janela de um automóvel. O sinal  vermelho obriga os carros a pararem e durante um minuto e meio, no palco de asfalto e iluminação de sol a pino,  as três mulheres são vistas.

Jéssica foi a primeira da família Zapata que abordei. Ela estava cansada, o mormaço das onze estava impiedosamente forte, por isso ela estava sentada. Ao me aproximar dela percebi que tínhamos  praticamente a mesma idade, mas em condições diferentes.  Visivelmente, Jéssica estava ali para ajudar a mãe e a avó. Quando perguntei a ela o que ela gostaria de fazer se não estivesse ali, ela me respondeu de maneira seca, porém firme: “estudar”. Ao vê-la ali mendigando por centavos me perguntei: onde estaria Jéssica agora se não houvesse crise na Venezuela, quem ela seria?

De longe é possível notar que  Heloísa é só uma mãe tentando sobreviver, em um lugar desconhecido. Ela é uma mulher tomada pelo silêncio, e seu silêncio diz muito.  Ela não se pronuncia diante dos carros, não diz quem é, apenas estende o cartaz  de papelão que está escrito em portugûes “Sou venezuelana. Você pode me ajudar?”. Antes de abordá-la, a observei de dentro do carro. Queria saber como  ela era vista do ponto em que caminhava até os carros.  Seus passos eram lentos e precisos, seu cabelo estava trançado e vestia uma blusa vinho com uma saia amarela, e nos pés uma havaiana azul turquesa, típica de nosso país.

Fui até ela, que estava sob a sombra das palmeiras que dividem as duas vias da Ceará. Começamos a conversar. No entanto, todas as perguntas permaneceram com uma interrogação. Heloísa  procurava palavras, mas não sabia o que dizer. Seu olhar estava trêmulo e parecia que, a qualquer momento, lágrimas iriam lavar seu rosto. Eu sabia que era necessário aguardar a resposta, mas haviam quilômetros de histórias que não seriam facilmente ditos naquela entrevista.

Depois de alguns minutos em silêncio, percebi que em seu pescoço havia um colar com uma imagem colorida de Cristo ao qual ela apertava enquanto voltava seu olhar para o caminho que percorreu. O silêncio é algo assustador quando se tem muito, quando já se gritou muito, a ponto de perder a própria voz. Todavia, algumas coisas ainda mantêm essa chama viva. Notei a seguinte frase em sua camisa: “Porque as estrelas dos céus e as suas constelações não darão a sua luz; o sol se escurecerá ao nascer, e a lua não resplandecerá com a sua luz. Isaías 13:10″. Baseando-me nesta frase, perguntei a Heloísa se a fé a havia trazido para o Brasil e ela me respondeu: “Estou aqui por causa da fé”. A fé é  popularmente conhecida por muitos como uma movedora de montanhas. Moveu também  pés venezuelanos para terras brasileiras.

Diferente da neta e da filha, Dolores  fica em um sinal bem mais a frente e tem uma postura abrupta. A senhora de mais ou menos 65 anos economiza na conversa e parte para a ação, o desfile por entre os carros. Desde a primeira vez que a vi,  em 2019, ela já cultivava o costume de usar  vestidos verdes, a cor da esperança. Dolores não usa tranças como Jéssica e  Heloísa. Ela mantém seus longos cabelos grisalhos soltos, seu rosto é queimado pelo sol e seu olhar é firme como os de quem já viveu de tudo. Com um pote de shampoo cortado ela armazena o que ganha. Alguns dão cinco centavos, outros, cinco reais.

Para nós o dinheiro no pote é pouco, mas para ela, que sobreviveu a uma inflação de 800% do bolívar,  isso  significa muito, assim como o sinal vermelho continuará sendo  sinônimo de sinal verde  para Heloísa, Jessica e Dolores.

WARAO: O povo Warao, tradicionalmente habitantes do delta do Rio Orinoco (Venezuela), são um grupo étnico bastante diverso no que tange à sua forma de organização social e costumes, compartilhando uma língua comum, também chamada Warao. 

Hellen Lirtêz é assessora de imprensa da Fundação de Cultura Elias Mansour (FEM), integrante da Academia Juvenil Acreana de Letras (Ajal), graduanda em Jornalismo pela Universidade Federal do Acre (Ufac), pesquisadora e ativista de gênero e raça.

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