Tia Vicenza, a história viva da colonização da Amazônia

Aos 81 anos, pioneira de Xapuri mostra vigor no restaurante mais conhecido da cidade e lembra os bons tempos do seringal

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Vicenza em frente ao tradicional restaurante de Xapuri que ela comanda há décadas no município (Foto: Sérgio Vale/Secom)

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Vicenza Bezerra da Costa é a história viva da colonização da Amazônia (Foto: Sérgio Vale/Secom)

Vicenza Bezerra da Costa chegou ao Acre aos 14 anos em meio à campanha de guerra e ocupação da Amazônia empreendida na década de 1940 pelo Governo Brasileiro. Como a grande parte dos nordestinos arregimentados pelo Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta), Vicenza viu as famílias viajarem amontoadas a bordo dos navios do Loyd, sempre, de acordo com ela, acompanhados por caça-minas e aviões de guerra. De acordo com o historiador Marcus Vinicius, da Fundação Garibaldi Brasil, cerca 60 mil pessoas foram enviadas para os seringais amazônicos entre 1942 e 1945. Desse total, quase a metade morreu por causa das precárias condições de transporte, alojamento e alimentação durante a viagem, além de fatores ligados ao ambiente extremamente hostil da Amazônia. 

Os nordestinos recrutados para trabalhar nos seringais foram chamados de "soldados da borracha", porém nunca receberam qualquer remuneração ou homenagem pelo esforço de guerra.  A saga de Vicenza e os soldados da borracha está retratada no filme "Mais borracha para a vitória".  Nele, Vicenza conta histórias e canta as músicas que serviam de conforto numa época de dor e sofrimento. Vicenza é de uma família de soldados da borracha, que é o nome dado aos seringueiros que foram chamados pelo governo a irem para a Amazônia trabalhar na produção de borracha para atender a grande demanda do produto. Durante os conflitos, os japoneses cortaram o fornecimento de borracha para os Estados Unidos. Como resultado, milhares de brasileiros do Nordeste foram enviados para extrair látex nos seringais amazônicos para suprir as indústrias dos países aliados, mais alarmante do que o da borracha. A entrada do Japão no conflito determinou o bloqueio definitivo dos produtores asiáticos de borracha. 

O título de Soldado da Borracha não trazia benefícios. Pelo contrário, dos 20 mil combatentes na Itália, apenas 454 vieram a morrer nos conflitos e quase a metade daqueles nordestinos de alguma forma padeceu na Amazônia.

Vicenza e os pais moraram 34 anos no Seringal São Francisco de Iracema, numa colocação ao centro do barracão dirigido primeiramente por Said Rachid e seu genro, Milton. Vieram outros patrões depois, até que em 1979 a figura do seringalista deixou de existir e deu lugar aos fazendeiros "paulistas". Nesse período, ouviu falar de Chico Mendes, mas nunca chegou a encontrar-se com o líder ambientalista.

Vicenza herdou da mãe o gosto pela culinária. Ainda em Alto Santo sua mãe tocava uma pensão e ela ajudava na cozinha. Depois da morte do marido, Raimundo, deixou o seringal e passou a se dedicar ao restaurante.

Festa com muita comida no seringal

No seringal, os patrões logo descobriam seus dotes para preparar uma boa comida e sempre que tinha festa (de São João, principalmente) Vicenza era convidada a fazer a refeição que seria servida aos seringueiros. Para dar conta do trabalho, Vicenza pedia a ajuda de quatro outras mulheres, já que tinha de fazer comida para oitenta pessoas, todas trabalhadores do seringal. O barracão era enfeitado com bandeirolas e 28 moças apresentavam números de danças juninas. Mais tarde, Pituba, o sanfonista, era convocado a tocar para todos os presentes dançarem.  "Naquele tempo era bonito", diz Tia Vicenza. O cardápio, segundo conta Vicenza, era farto: carne de boi, porco, galinha e pato.

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O restaurante serve hoje mais de 10 mil refeições ao mês no restaurante localizado às margens do rio Acre (Foto: Sérgio Vale/Secom)

Vicenza casou em 1945, ano do fim da 2ª Grande Guerra, e teve cinco filhos. Todos nasceram em São Francisco da Iracema, mais precisamente na Colocação Belo Monte. Uma de suas filhas ainda vive lá até hoje.

Tradicional pensão de Xapuri

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Em momento de emoção, Viceza encontra-se com o governador Binho Marques (Foto: Sérgio Vale/Secom)

Tia Vicencia, como é mais conhecida, ficou famosa em Xapuri pela boa comida que serve em sua pensão, no centro antigo da cidade, e durante programação na Praça da Igreja viveu mais um momento emocionante em seus 81 anos ao encontrar-se com o governador Binho Marques.

A pensão começou no Mercado Municipal com uma mesa, dois bancos e dois tamboretes. Ali, Tia Vicenza começou preparando pouca comida, já que não havia clientes. Comprava dois quilos de arroz, dois de feijão e dois frangos, alguma carne para bife e para assado de panela.  Hoje, serve mais de 10 mil refeições ao mês no restaurante localizado às margens do rio Acre, e já foi qualificada em primeiro lugar em pesquisa de preferência popular e simpatia pública.

Cântico aos heróis nordestinos

Dona Vicenza lembrou um pouco dos tempos sofridos da viagem desde a cidade de Alto Santo, no Ceará, até o Acre, e cantou uma música composta na época da viagem ao Acre – um ode à coragem do soldado da borracha, que mesmo isolado na mata num processo de total exclusão e exploração, guardava o brio de guerreiro:

{xtypo_rounded2}Hino do Soldado da Borracha

Destemido soldado da borracha
Deste exército modesto varonil
Não esqueça de cumprir o seu dever
Trabalhando em defesa do Brasil
Envolvido nas florestas espessas
Esquecendo funestos empecilhos
O Brasil nesta fase já precisa
Do amor dedicado dos seus filhos

Viva o soldado brasileiro
Teu produto servirá ao mundo inteiro

Quando o raio fulgurante
Da vitória brilhar em nosso país
Aí veremos que os nossos esforços
Asseguram a liberdade tão feliz
Se sofreres tão triste episódio
Tristes ermos da negra solidão
Mas um dia liberto deste cárcere
Cantaremos a glória da nação

Viva o soldado brasileiro
Teu produto servirá ao mundo inteiro 

No momento que entraste na fileira
Do batalhão velocíssimo da floresta
E que pensaste na vitória do Brasil
Esquecendo a longa vida funesta
Destemido soldado triunfante
Deste solo sombrio pertencer
Com o peito vibrando de alegria
Nas estradas consagradas do dever

Viva o soldado brasileiro
Teu produto servirá ao mundo inteiro {/xtypo_rounded2}


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