Eu era um dos poucos homens que faziam o atendimento dos pacientes ambulatoriais da Fundhacre. E por causa disso – e uma cara de poucos amigos – a chefia decidiu que eu devia ter jeito o suficiente pra conseguir lidar com todos os atendimentos do setor de ortopedia.
Era 2007 ou 2008. Nem lembro direito. Tinha acabado de passar num concurso público do Estado e já estava no furacão que era tentar atender bem os pacientes ambulatoriais que passavam pela Fundação.
O ambulatório oficial estava numa reforma que não acabava nunca. E o ambulatório provisório era cheio de paredes de gesso, madeira que inchava com qualquer gota d’água e tendas que exalavam um calor maravilhosamente perturbador no verão amazônico.
Mas eu nunca esqueço mesmo era das segundas-feiras de manhã.
Era o ambulatório do doutor Rodrigo Minuano, o maior craque em joelhos que já existiu no Acre. Ele juntava mais uns médicos, uns residentes de ortopedia, e conseguia a proeza de atender mais de 100 pacientes numa única manhã, no que era praticamente um mutirão. Um show de eficiência. Mas enquanto ele tinha uma equipe, eu era responsável por organizar essa galera toda sozinho.
Era gente de todos os tipos, traumas e humores. Gente com um joelho bichado às vezes pode ser estressada, então imagina 100. Mas eu milagrosamente dava conta. Organizava a fila, as prioridades, chamava um por um no microfone para serem atendidos. Muita gente queria levantar a voz, outras só queriam um pouco de atenção, fiz amigos marcantes, fiz gente que não suportava olhar no meu olho. Funcionava, de uma maneira estranha em alguns momentos, mas funcionava.
Criei e aperfeiçoei métodos, numa época em que tudo era mais manual e envolvia muito papel.
Um deles era de que se devia ao fato de que existiam algumas cadeiras de rodas para pacientes que precisassem usar durante o atendimento. Sempre passava por ali gente pobre mesmo e que, enquanto não podia andar, mal tinha dinheiro pra uma muleta de madeira, imagina cadeira, mas conseguíamos ajudar minimamente. Emprestávamos as cadeiras por todo o atendimento na Fundação, enquanto eu retinha apenas o documento de identidade.
Então, mais um dia, mais uma segunda-feira, mais um mundaréu de gente. Uma das primeiras pessoas a vir falar comigo foi um senhor. Sorridente, mas meio tímido, negro, vestes surradas, pele queimada do sol, notavelmente da área rural. Chegou até mim e soltou:
– Bom dia, eu queria uma cadeira de rodas pro meu menino. Você pode me ajudar?
Criança. A prioridade das prioridades. Larguei a fila que logo se encheu de alguns murmúrios, pedi o documento do senhor, ele me deu o RG, já liberei a cadeira e disse pra ele voltar comigo após o atendimento. O senhor abriu um baita sorriso de satisfeito e levou a cadeira para seu filho. Assim, segui no serviço.
Duas horas depois e algumas dezenas de pessoas encaminhadas, dou uma respirada de alívio pelo dia estar se desenrolando bem, mas, quando olho para a grama, fico paralisado pela cena do senhorzinho em pé, ao lado do filho na cadeira de rodas, um rapazinho de não mais que uns oito anos, magrinho e praticamente uma xérox do pai. Tomo um susto enorme, afinal, como uma criança em cadeira de rodas ainda não tinha sido atendida? Largo tudo e vou correndo conversar com eles.
– Meu senhor, e o atendimento do seu filho? O senhor já confirmou a consulta comigo para a gente já colocá-lo no atendimento? Qual é o médico dele?
Mais surpreso ainda, o senhorzinho ao lado do menino me devolve:
– Moço, a gente não tem consulta não. Eu vim com ele da colônia. É que ele não anda, sabe? Aí eu vim aqui atrás de uma cadeira de rodas pra ele ficar melhor lá em casa e me disseram que eu conseguia com você. Aí eu tô só esperando o senhor devolver o documento pra gente poder ir.
Instintivamente olhei para o garoto. Estava com um sorriso enorme. Uma satisfação que apenas uma criança às vezes pode exalar. E foi como se eu tivesse levado um soco. Foram uns cinco segundos sem ar processando toda a história. Ele não era paciente. Ele só queria uma cadeira de rodas pra viver melhor. Não era para o atendimento momentâneo. Era pra vida.
Tive que me esforçar muito para manter a compostura e, principalmente, eu precisava ajudar aquelas pessoas.
Com calma, expliquei que as cadeiras do ambulatório eram para empréstimo momentâneo, mas que existiam programas do Estado para doações e que iríamos até a assistência social da Fundhacre para deixar ele a par de tudo e entrar nos cadastros da Sesacre. Com uma compreensão do tamanho do universo, ele manteve sua simpatia, entendeu e agradeceu. Ainda os acompanhei. Os deixei sob os cuidados da chefe da assistência. Uma simpatia de mulher, lembro, fazia esforços enormes ali. Acolheu-os superbem. Saí da sala, que ficava do outro lado do complexo e voltei pro meu posto com o coração na mão.
Algumas horas depois, um dos assistentes sociais voltou com a cadeira. Me pede o documento para devolver para o senhor. Acabei conversando com ele um pouco, pedindo informações do que foi encaminhado e acabou que foi aquilo que eu já sabia que ia acontecer, cadastro e aguardar. Apenas quando ele tava indo, lembrei de perguntar:
– Ele vai embora como?
– De ônibus. Como veio.
– E como vai levar o garoto?
– Como veio também. Nos braços.
Nos olhamos por um momento em silêncio e ele foi embora.
No fim, ficou um sabor amargo na boca. Eu consegui ajudar mais de 100 pessoas naquele dia a alcançar minimamente seus objetivos de saúde. Teve uma que eu não consegui plenamente. E aquilo me marcou. Como servidor público, acho que vou carregar essa história por toda a vida.
Onde estiverem agora, de verdade, espero que estejam bem.
Samuel Bryan é jornalista, editor da Agência de Notícias do Acre, fã de filmes de terror, por isso podcaster no Falando no Diabo e gaymer nas horas vagas