Sou um bairrista, como todo acreano.
E como resultado, acabei ficando com muita raiva quando o filme escolhido para representar o Brasil no Oscar 2024 foi Retratos Fantasmas, do grandioso Kleber Mendonça Filho, em vez de Noites Alienígenas, o fenômeno gravado em terras acreanas, pelo acreano de coração Sérgio de Carvalho.
Por isso, acabou que fui assistir Retratos Fantasmas meio rancoroso. Mas a verdade é que, ao terminar a sessão no Cine Teatro Recreio, eu estava completamente arriado emocionalmente pela obra.
A primeira surpresa é que Retratos Fantasmas é na verdade um documentário. Kleber havia se consagrado no mundo inteiro com Bacurau, mas já era nacionalmente aclamado por Aquarius e O Som ao Redor, obras ficcionais com uma mensagem social absurda, cada uma à sua maneira. Mas é interessante que, de todas as mensagens de seus filmes, Retratos talvez tenha sido a que mais me atingiu.
Com tom de autobiografia e preservação de parte da história da cultura de Recife, no documentário, Kleber conta a história do centro da cidade a partir das salas de cinema que movimentavam a população e ditavam comportamentos, na era de ouro do período cinematográfico, das grandes salas, da arquitetura imponente, do glamour, da febre entre a população pelos lançamentos, do mero cinema de rua, que hoje está em decadência no Brasil inteiro, mesmo nos grandes centros urbanos, onde os cinemas de shopping têm dominado um público cada vez mais reduzido.
Ter vivido esses cinemas, trabalhado neles e buscado preservar sua história de ascensão e queda é o mote do emocionante documentário, a partir das próprias experiências do diretor. Ainda assim, é a primeira parte do filme que mais me interessou. Porque antes de ir para o centro de Recife, Kleber passa pela própria casa. Um lugar de memória, identidade e onde moldou seu caráter.
A primeira parte de Retratos Fantasmas mostra a história do apartamento do cineasta. Um lugar conquistado pela própria mãe. É basicamente o lugar onde aprendeu o gosto e amor pela vida. Recuperando inúmeras fotos de família e vídeos VHS que foram digitalizados, ele faz um retrato onde mescla seus sentimentos pessoais, vivências familiares, a história de Recife e seu trabalho como diretor. O grande apartamento é moradia, local de trabalho, estúdio de edição e ponto de locação, além de um totem a tudo aquilo que sua mãe representou em sua vida.
É emocionante. E reflexivo.
Terminar Retratos Fantasmas me mergulhou em profundos sentimentos.
Acho que o principal deles foi a ideia de como estamos cada vez com o olhar mirando para frente. Tudo é o agora. Tudo é o futuro. Dos afazeres, as preocupações. Resultados das ansiedades, do imediatismo. Revisitar o passado é necessário. Fortalecer nossas origens é um ganho. Preservar nossa própria história é essencial.
E não falo de coisas grandiosas aqui, mas daquilo que Retratos Fantasmas me acordou. A formação da identidade e aquilo que molda nosso caráter é feita ao longo de pequenas coisas da vida, acontecimentos, base, família, escolhas, amizades, caminhos, amores.
E escolher como preservar a memória é que nos resguarda disso também. De sermos bons seres humanos junto à refrescante sombra daquilo que vivemos, como uma rede numa varanda na praia.
Acabou que o filme me fez ter uma atitude específica também. Revirei algumas gavetas do escritório após a mudança que fiz para meu apartamento e encontrei uma fita VHS em específico. Meu aniversário de dois anos. Hoje tenho 35, beirando os 36. Será que era possível salvá-la ainda? Demorei horrores para encontrar alguém que ainda fizesse a digitalização aqui em Rio Branco. Cada contato anterior era um “não fazemos mais esse trabalho, mas eu conheço um aqui que ainda faz”. E no fim o que ainda fazia, não fazia mais também. Mas achei!
Quando peguei o arquivo digitalizado (após sutis frases de “está bem difícil, mas vai dar certo”) resolvi fazer uma sessão especial na casa dos meus avós, local onde justamente foi feita a festa há quase 34 anos. Foi uma sensação. Justamente por não termos muito essa preservação da memória familiar mais antiga. Fotos do passado de todos há, mas vídeo não. Esse seria o registro em audiovisual mais antigo da minha família. E eles nem faziam ideia de que eu tinha a fita guardada até hoje.
Na TV da sala brotou então eu cabeçudo, com dois anos, dançando lambada e Xuxa, minha mãe e tias ostentando beleza e os cabelos do início dos anos 90, meu avô com seu charmoso bigode de galã, minha vó exibindo uma linda cintura, meu tio com então apenas 13 anos me seguindo pra cima e pra baixo. Um típico aniversário dos anos 90. Daquele bom bolo do tamanho da mesa, que dava pra alimentar a rua inteira se quisesse.
A casa era tão mais humilde na época… As paredes sem pintura, ainda nem havia sido construída a garagem. Mas havia tanta felicidade ali! Minha mãe foi tão caprichosa com a festa, os docinhos personalizados eram lindos e a decoração do Mickey, que eu amava, enchia a mesa. Eu dançava, pulava, gritava, abraçava, mandava beijo. Vivi a festa. Minha família também. Sempre fui muito amado pela minha família. Aquele vídeo era uma prova vívida.
A reação de todos na sala, enquanto assistiam à gravação, era das mais diversas. Minha mãe e tia riam alto e comentavam tudo quase gritando, incluindo tentando adivinhar quem eram os convidados amigos da época. Minha avó lembrava com carinho também daqueles que já haviam partido. Meu tio riu tímido de si mesmo no início da adolescência. Meu avô via tudo calado, mas os olhos brilhavam, estava emocionado com a lembrança. Todos estavam. Eu principalmente. Até meu namorido que acompanhou com ineditismo me ver piquititito.
E, claro, a sensação gostosa de que aquela era minha base, minha segurança, saber com quem eu posso contar no futuro, principalmente por saber de todo o amor que foi construído desde o passado. Novamente, preservar nossas memórias é essencial.
Samuel Bryan é jornalista, assessor de comunicação na Agência de Notícias do Acre, fã de filmes de terror, por isso podcaster no Falando no Diabo e gaymer nas horas vagas