Refletindo sobre o medo da morte para vivermos melhor

O medo tem sido constante durante esse difícil período de pandemia da Covid-19 que estamos atravessando. Isso porque as pessoas nunca pensaram tanto na morte como nesse momento. Obviamente essa ameaça é real para todos. No entanto, a morte sempre esteve presente, com ou sem pandemia. Na verdade a morte e o nascimento são os dois lados de uma mesma moeda chamada vida. Então temos que tentar harmonizar essa percepção de impermanência corporal dentro de nós com calma, harmonia e sabedoria para não entrarmos em desespero.

Nessa semana se comemorou o nascimento de Sidarta Gautama, que se tornou o Buda (O Desperto, O Iluminado). Uma oportunidade preciosa para fazermos uma reflexão sobre a vida e a sua finitude no aspecto material. A sua história nos dá pistas para entendermos mais a nossa existência.

Sidarta Gautama nasceu no norte da Índia, como príncipe herdeiro de um reino poderoso e próspero. Ele tinha tudo o que alguém pode almejar materialmente. Riquezas, uma linda esposa, empregados, soldados, segurança e poder político. Mas um dia, ainda muito jovem, ao sair do seu palácio, viu um velho doente e em seguida a cremação do corpo de um recém-falecido. Essas visões tiveram um profundo impacto sobre ele, que não conseguiu mais parar de pensar sobre a doença e a morte, mesmo vivendo no mais absoluto conforto.

A pergunta que Sidarta se fazia era qual o sentido da vida, se em algum momento ela terminaria para todos da mesma maneira. Ricos e pobres, reis e mendigos, todos teriam o mesmo fim. Entender esse mistério da existência se tornou o mais importante para Sidarta. Um dia, secretamente, abandonou o seu palácio e trocou as suas vestes de príncipe com as de um mendigo e começou a vagar pelo mundo atrás de uma resposta para as razões do sofrimento humano.

Ele se tornou um renunciante, esmolando e provando todas as privações das classes mais baixas da Índia. Quase não comia, se autoflagelava e, no entanto, depois de muitos anos vivendo assim, ainda não tinha encontrado a solução para o enigma da morte, que o assombrava. Um dia, sentado à beira de um rio, observou ao longe um mestre músico que ensinava ao seu discípulo.

Com um instrumento de cordas nas mãos, o músico mostrava como deveria ser feita a afinação. “Se as cordas estiverem muito esticadas irão arrebentar, e demasiadamente frouxas não emitirão sons. É preciso que estejam no ponto do meio, nem esticadas e nem frouxas para poderem emitir um som agradável.” Esse diálogo despertou Sidarta para aquele que se tornou o seu maior ensinamento e base para o budismo, o caminho do meio.

Pouco tempo depois Sidarta alcançou a iluminação e se tornou um buda. Conseguiu dominar a sua mente e vencer os seus desejos e, consequentemente, o medo da morte. Entendeu que a vida é para ser vivida na sua plenitude. E a morte uma travessia da qual ninguém pode fugir. O sofrimento deriva justamente dos desejos mentais ilusórios de possuir (inclusive um corpo) e da identificação com a nossa personalidade social, o que achamos que somos, a nossa biografia. Duas coisas que inexoravelmente em algum momento a morte irá destruir.

A impermanência do nosso corpo é inevitável e o medo da morte decorre da nossa identificação com ele. Achamos ser apenas um corpo, uma personalidade, quando na realidade somos muito mais que isso. O nosso verdadeiro Ser é eterno e, segundo os ensinamentos budistas, pode reencarnar muitas vezes em outros corpos para continuar o seu processo evolutivo até o despertar definitivo (Samadhi).

O caminho do meio pressupõe um equilíbrio necessário para a nossa vida. Aprender as coisas do espírito, mas aproveitar também o momento em que habitamos um corpo para vivermos as nossas experiências neste plano material. Assim, acredito que devemos ter todos os cuidados necessários para preservá-lo. Cuidar com atenção da nossa alimentação e da nossa saúde. Evitar desgastar o nosso corpo desnecessariamente porque ele é o nosso veículo nesse plano de existência.

Num dos livros hindus mais antigos da humanidade, o Bhagavad Gita, é narrado um diálogo entre o Senhor Krishna e o seu discípulo Arjuna diante de um campo de batalha. A divindade explica que poderá ensinar a Arjuna todos os mistérios da vida. Mas ainda assim um fato permanecerá imutável, “da mesma maneira que um roupa velha precisa ser trocada, o nosso corpo também em algum momento será descartado”.

Nas palavras do Mestre Raimundo Irineu Serra, criador da Doutrina Santo Daime, “a morte é muito simples, assim eu vou te dizer, eu comparo a morte é igualmente ao nascer, depois que desencarna firmeza no coração, se Deus te der licença volta a outra encarnação”.

Note que tanto nos ensinamentos do Buda, do Baghavad Gita, como do Mestre Irineu, um humilde mateiro negro da Amazônia, a morte é sempre vista como uma passagem e não um fim. Todos se referem à possibilidade da continuidade do nosso verdadeiro Ser em outros corpos.

Então a morte sempre estará ali nos espreitando. Agora, é uma decisão nossa ficar olhando nos seus olhos, imobilizados pelo medo, ou tentar entender as razões da sua existência para seguir em frente, abandonando as dores do passado e as apreensões em relação ao futuro.

O caminho do meio é viver um dia de cada vez, se estabelecendo sempre no presente, abandonando passado e futuro. Tendo consciência da nossa respiração, que renova constantemente a vida do nosso corpo e, ao mesmo tempo, nos conecta à eternidade, que é de onde viemos e para onde voltaremos um dia.

Nelson Liano é jornalista e diretor da Secretaria de Estado de Comunicação

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