“Kanarô”, para os índios Yawanawá, significa saudade, muita saudade, uma saudade de chorar! É como às vezes sinto a saudade da aldeia Nova Esperança, lá nas cabeceiras do rio Gregório, próximo à fronteira do Acre com o Peru, onde fui mais uma vez, no último dia 25 de outubro, viver as grandes e fortes emoções de mais um Festival de Canto, Dança e Espiritualidade dos índios Yawanawá.
Ali, por sete dias, centenas de crianças, jovens, adultos e velhos índios Yawanawá entram numa espécie de transe para festejar, com muita alegria, danças, cantos e brincadeiras a mãe natureza e tudo de bom que ela oferece no dia a dia da floresta, dos varadouros, dos rios e dos igarapés da região. O Yawá, como chamam o festival, se transforma todos os anos numa grande e alegre pajelança em meio a muita paz e beleza da floresta.
Tal qual uma morada divina, como os velhos pajés costumam chamar as cabeceiras dos rios amazônicos, o Povo da Queixada – o significado do nome Yawanawá – se diverte muito de dia e, à noite, se aconchegam em volta das brasas de pequenas fogueiras para tomar “Uni”, cheirar rapé e conversar com os bons espíritos que vagueiam pela região. O Uni, também conhecido como Aywaska, bebida de seus ancestrais, ajuda a todos a ampliar a espiritualidade durante a noite, ali sempre banhada por um céu de muitas estrelas, quando não pela majestosa lua cheia que quase torna dia os terreiros da grande aldeia.
Desta vez, passei dois dias no festival, tempo suficiente para, mais uma vez, perceber que ali, como dizem os sábios pajés, é mesmo um lugar onde Deus faz uma de suas moradas. Uma morada que começa na paz suprema da floresta e segue pelo olhar e o sorriso de cada Yawanawá, embevecidos pela pureza de suas almas e o aconchego de seus corações. Cada sorriso e cada olhar deles espelham simplicidade, humildade, sinceridade, solidariedade e outras riquezas de vida.
Chegando à aldeia depois de nove, dez horas de barco subindo o rio Gregório, a partir da BR-364, a 70 km de Tarauacá, qualquer cansaço se desfaz em meio a tanta alegria, carinho e amor que cada Yawanawá dispensa aos visitantes. E foi o que aconteceu mais uma vez com o grupo do qual fiz parte para vivenciar o esplendor da energia positiva que se acumula no corpo e na alma de qualquer um que adentre aquela densa floresta e participe das danças e dos cantos do fantástico Povo da Queixada.
“Kanarô, terê-tê-intê, Kanarô terê-tê-intê…”, canta todo o povo Yawanawá, reunido logo de manhã cedo em grandes rodas formadas no meio do terreiro central da aldeia Nova Esperança. Nus da cintura para cima e pintados em incríveis desenhos (kenês), capturados durante as viagens espirituais das mulheres que tomam Uni, os índios dançam e cantam antigas e belas canções, que mais parecem hinos e que falam da floresta, dos animais, das aves, da água, do vento, do ar. Cantos que ecoam por dentro da mata depois de transpassar os corações e as mentes dos queixadas.
Estavam lá eu, o Tião Viana, a Marlúcia, o César Messias, o Márcio Meira (presidente da Funai), o Edvaldo Magalhães, o Luiz Dórea, a Jaqueline, o Anselmo, o Francisco Ashaninka, o Marcos Frota, o Edvaldo de Souza, o Rico, o Zé Luiz, o Carlinhos, a Selma, a Solange, o Reis, o Davi, o Sérgio Vale, a Tatiana, o Leal, a Bárbara, o João Bosco e outros amigos e amigas, todos enbevecidos e sorvendo as lições de vida dadas a todo instante pelos Yawanawá.
Muito mais do que levamos para eles – a duplicação da terra indígena, 12 computadores, marcenaria, casa de farinha, médicos do Saúde Itinerante e outros benefícios – mais os Yawanawá nos deram em troca mostrando como se pode viver em harmonia e alegria com a mãe natureza. É o resgate dos reais valores da vida, presentes em tempos de criança, em épocas de inocência e em histórias de amor.
“Kanarô terê-te-intê, Kanarô terê-te-intê…” nos conduzia ao tempo e ao vento a Arara gigante, a ave que voa mais alto no mundo, levando, de um lado para outro do rio, a saudade e a pureza para os corações dos homens, das mulheres, das crianças e dos velhos. Voávamos com ela rumo a um mundo novo, cheio de paz, saúde, solidariedade e alegria. De dia, soltávamos os espíritos e, de noite, nos uníamos a eles nas rezas e cantorias serenas do velho pajé Yawá, cheias de vida e muita sabedoria.
Por isso, meu coração vai estar sempre Kanarô, com saudade, muita saudade, saudade de chorar (!) pensando nas matas e águas do Gregório e no seu povo maravilhoso!
“Kanarô” do Yawá, do Biraci, da Maíra, do Charles, da Putani, da Jaqueline, do Nani, do Tatá, do Seu Raimundo, do Joaquim e de todo o fantástico povo da Queixada, que anda em bando pelas matas sorrindo, cantando, dançando e amando.
Romerito Aquino, jornalista