Programa para erradicar analfabetismo transforma a vida de detentos do Acre

“Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo.” A mensagem de Paulo Freire, patrono da educação brasileira, está estampada em um painel de EVA na entrada da Escola Fábrica de Asas, dentro do Complexo Penitenciário de Rio Branco, onde é desenvolvido um programa que une ressocialização e educação para que os reeducandos possam ter oportunidade após cumprirem sua pena.

‘Alfabetizar Para Prosperar’ foca na erradicação do analfabetismo dentro dos presídios do Acre. Foto: Marcos Vicentti/Secom

Ressocializar tem como significado fazer com que um indivíduo seja inserido novamente na sociedade após ter sido privado da liberdade. E cabe ao Estado o papel de oferecer oportunidades e meios para que o reeducando saia do sistema prisional com uma nova perspectiva e pronto para trilhar novos caminhos.

Em junho do ano passado, um projeto que tem como parceiros o Ministério Público do Acre (MP-AC), o Instituto Brasileiro de Educação e Meio Ambiente (Ibraema), sob a execução de Jovens com Uma Missão (Jocum) e o governo do Estado, por meio do Instituto de Administração Penitenciária (Iapen), está levando alfabetização para os privados de liberdades que não sabem ler e escrever por meio do projeto “Alfabetizar para Prosperar”, que consiste em capacitar um reeducando para que ele seja um facilitador nesse processo. Inicialmente, o projeto piloto ocorre com os presos do pavilhão A, mas a ideia é que ele seja expandido e ampliado em outros municípios.

Essa é uma das medidas que vem reforçar o trabalho da educação já feito dentro dos presídios do estado, que possuem bibliotecas, mantidas com doações de livros, e o ano letivo feito pela equipe da educação dentro da unidade.

Diego ajuda Amaury a aprender a ler dentro da unidade prisional. Foto: Marcos Vicentti/Secom

Analfabetismo no sistema

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua: Educação 2022, divulgados em junho do ano passado, mostram que a taxa de analfabetismo no Acre é de 8,5%. Essa média também se repete dentro do contexto do sistema carcerário.

Da população carcerária do estado, 7,5% não sabem ler nem escrever e 60% dos reeducandos do Complexo Penitenciário de Rio Branco não possuem nenhum ou tem baixo grau de escolaridade, de acordo com a Divisão de Educação Prisional do Instituto de Administração Penitenciária (Iapen-AC).

Foi com foco nesses números que os parceiros se uniram para tentar reverter essa realidade. No projeto “Alfabetizar Para Prosperar”, o Ibraema capacita um reeducando que vai dar apoio aos demais. Essa ação, somada a outros projetos da educação nos presídios, já tem dado resultados.

Em poucos meses, Amaury Lima conseguiu aprender a escrever seu nome. Foto: Marcos Vicentti/Secom

Amaury Santos da Silva Lima, de 61 anos, está há sete cumprindo pena na capital. Para ele o projeto foi essencial, já que sempre trabalhou em seringal e não teve acesso à educação. Em pouco mais de sete meses inserido no programa, ele já consegue escrever o nome e juntar algumas palavras – um grande passo para quem não sabia ler.

“Passei boa parte do meu tempo em seringal e não dava importância para educação. Quando cheguei aqui tive essa oportunidade e abracei isso. Estou me dando bem, porque já estou fazendo meu nome e conseguindo ler alguma coisinha. Quero sair daqui e conseguir ler a Bíblia e poder assinar meu próprio nome”, planeja.

Lima assina documentos atualmente marcando com o dedo. Enquanto escreve o nome diz orgulhoso que vai aposentar o antigo modo de se identificar:

“Eu comecei do zero. Então, hoje eu considero já uma grande coisa [saber escrever o nome]. Já conheço bastante letra, mas ainda não consigo ler muitas palavras. Quando eu conseguir ler algumas coisas isso vai me dar muita felicidade.”

Diretor do presídio destaca que a educação impacta na mudança de postura e pensamento dos reeducandos. Foto: Marcos Vicentti/Secom

‘O sonho de todos é mudar de vida’

Uma peça importante desse progresso é Diego da Silva Vieira, de 32 anos. Quando foi preso tinha estudado apenas até a quarta série. Segundo ele, quando se envolveu no mundo do crime, sem acesso à educação, não tinha como ter uma perspectiva diferente.

Em um dos momentos mais difíceis surgiu a oportunidade de mudar de vida. Foi na cadeia que Vieira teve a oportunidade de seguir os estudos e está finalizando o ensino médio, com o sonho de ingressar no ensino superior.

Ele também foi o escolhido para ser um facilitador, ou seja, foi capacitado para auxiliar os outros presos na leitura. “Nós fomos treinados pelo Ibraema para sermos facilitadores e ajudar aqueles que não sabiam ler. Na terça e quinta, na escola, temos uma hora e meia para poder passar o estudo para eles”, explica.

Na sala de aula, presos conseguem ter acesso a livros que são doados. Foto: Marcos Vicentti/Secom

O projeto, desde sua implantação, já alcançou 20 reeducandos analfabetos do Pavilhão A.  Esses participantes foram selecionados com base em seu bom comportamento e interesse em aprender a ler e escrever, garantindo um ambiente propício ao aprendizado e ao desenvolvimento pessoal.

“Lá fora, quando a gente estava envolvido no mundo do crime, não tinha espaço para focar em uma meta, mas hoje temos outro entendimento. Eu já procuro buscar mais conhecimento e isso me ajudou muito. Até para ler a Bíblia também, como manual. Hoje eu leio diversos livros, tenho facilidade”, disse.

O nome da escola faz jus aos projetos educacionais desenvolvidos dentro do sistema carcerário. Fábrica de Asas faz alusão a ideia de que somente a educação pode libertar.

“Tenho vontade de terminar quando sair daqui. O sonho de todo reeducando é mudar de vida e obter uma meta de poder regressar à sociedade, porque não olham a gente como seres humanos, mas temos sim essa vontade de voltar para nossas famílias e fazer um curso. Acredito que ainda há esperança”, ressalta.

Por meio da educação, reeducandos conseguem ter esperança de mudar de vida. Foto: Marcos Vicentti/Secom

‘Estratégia eficaz e humanizadora’

Respondendo pela 4ª Promotoria de Justiça Criminal, Rodrigo Curti destaca que a baixa escolaridade desses reeducandos limita o acesso à oportunidade, dificultando a construção de uma nova trajetória de vida, principal pilar do processo de ressocialização. Para ele, o programa contribui para que o reeducando consiga ter direito pleno à cidadania, o que reflete na redução das taxas de reincidência e retorno ao sistema prisional.

“O fortalecimento de parcerias para elevar o nível de educação nos presídios tem um impacto significativo, tanto no processo de ressocialização dos apenados quanto na sociedade em geral. Ao promover a educação, cria-se um caminho para que os reeducandos desenvolvam habilidades essenciais, como a alfabetização e a ampliação do conhecimento, que são fundamentais para sua reintegração social e profissional”, destaca o promotor.

Presos foram capacitados para ajudar na alfabetização de outros presos. Foto: Marcos Vicentti/Secom

Curti ressalta que o fato de muitos reeducandos só terem acesso à educação dentro dos sistema prisional escancara uma grave lacuna social e evidencia a importância desses projetos. “A educação no sistema prisional desempenha um papel fundamental na ressocialização. Ela não apenas promove o desenvolvimento pessoal e a autoestima dos apenados, mas também amplia suas perspectivas, reduzindo a propensão à reincidência criminal.”

Ao influenciar diretamente na redução da reincidência, de acordo com o promotor, esses projetos impactam os índices de violência no estado. Um indivíduo educado, com mais ferramentas para se reintegrar à sociedade, tem maiores chances de romper o ciclo de exclusão e criminalidade. “A educação, portanto, se apresenta como uma estratégia eficaz e humanizadora para diminuir a violência e construir uma sociedade mais segura e justa”, completa.

Outro ponto positivo desse projeto é que dá espaço para que os próprios apenados sejam multiplicadores do conhecimento, se tornando motores dessa mudança social. “Essa abordagem fortalece o senso de responsabilidade e protagonismo dos reeducandos, além de criar um ambiente de aprendizado colaborativo. Quando os próprios apenados se tornam agentes de transformação, o impacto do projeto se amplia, alcançando mais pessoas e consolidando uma rede de apoio e estímulo ao aprendizado.”

Reeducandos são multiplicadores de conhecimento. Foto: Marcos Vicentti/Secom

Papel fundamental

As unidades prisionais também desenvolvem outros projetos da educação, como é o caso do “Presídio Leitores”, que, além de incentivar a leitura, também ajuda na remição de pena. No berço do projeto, em Cruzeiro do Sul, a unidade prisional conta com seis reeducandos fazendo ensino superior.

O foco na educação dentro do sistema prisional é imprescindível para o processo de ressocialização. Sueli Carneiro, escritora, filósofa e ativista defende que “a universidade é o maior ativo para se garantir a mobilidade social no Brasil”, logo o trabalho nos presídios de preparar esse reeducando para o ensino superior é um aliado dessa mudança.

Juscelino Bandeira diz que é preciso educação para uma mudança efetiva no comportamento do reeducando. Foto: Marcos Vicentti/Secom

Juscelino Bandeira é professor e está como diretor da escola Fábrica de Asas, atendendo cerca de 648 alunos, que fazem parte de turmas de alfabetização, ensino fundamental e ensino médio. Ao todo, onze professores fazem parte do quadro e dão aulas de segunda a sexta, das 7h às 11h.

“A escola tem um papel fundamental na ressocialização. Eu penso que um educando ressocializado é uma pessoa a menos para cometer um crime. Então, nossa meta é essa, é ressocializar o máximo que nós pudermos através da educação de jovens e adultos”.

Trabalhando com educação dentro dos presídios desde 2019, o professor destaca que o melhor retorno é quando encontra um preso que foi ressocializado. “É gratificante quando nós encontramos eles lá fora, trabalhando, empregados em uma empresa terceirizada, mudando de vida. Vale a pena você ver que realmente mudou a vida daquela pessoa. Nós tratamos nossos alunos como alunos, sem levar em consideração o crime que ele cometeu. No banco da escola todos são iguais, é o que está na lei”, enfatiza.

No Acre, 7,5% dos presos são analfabetos, segundo dados do Iapen. Foto: Marcos Vicentti/Secom

Projetos de educação

A chefe da Divisão de Educação Prisional do Iapen, Margarete da Frota Santos, explica que o Estado tem feito pesquisas e diagnósticos para uma melhor atuação.

“No primeiro semestre de 2023 foi realizada uma ação diagnóstica articulada por meio da parceria existente entre Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esportes [SEE] e Instituto de Administração Penitenciária (Iapen), onde constatou-se que cerca de 7,5% das pessoas em situação de privação de liberdade não dominam o código escrito e, por essa razão, compõem os índices de analfabetismo do estado. Assim, após a identificação dos custodiados que precisam de intervenção educacional para a alfabetização, cerca de 130 já foram inseridos em processo educacional no estado em 2023, em turmas de EJA I [Educação de Jovens e Adultos]”, explica.

Escola funciona dentro do Complexo Prisional em Rio Branco. Foto: Marcos Vicentti/Secom

Já para este ano, Margarete disse que será aberto um processo de matrícula. Serão disponibilizadas nas unidades penitenciárias do estado vagas para mais 175 custodiados que foram identificados nessa ação diagnóstica com vista à erradicação do analfabetismo.

“Para muitos dos custodiados esse processo formativo é essencial, sobretudo para aqueles que sequer apropriaram-se do código escrito e tampouco desenvolveram habilidades que colaborem para sua sobrevivência em sociedade de forma digna. Para que possa retomar o convívio sem oferecer risco à sociedade, e com possibilidades de garantir o seu sustento e de sua família de forma digna, deve-se considerar seriamente a necessidade de oferta efetiva de possibilidades educacionais dentro dos presídios que contribuam para a elevação da escolaridade dos custodiados”, finaliza.

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