Pois não, minha majestade

José Francisco Borges, 67 anos. Sete filhos e filhas, lançados como sementes de um homem gentil sobre a terra. Franzino, a face ossuda e rubra sempre com ar de relaxamento e silêncio interior profundo – os lábios quase sorrindo, mas os olhos dizendo: pois não, minha majestade.

Seu Borges faleceu neste domingo, 2 de agosto Foto: Cedida

Seu Borges faleceu neste domingo, 2 de agosto.

Seu Borges só poderia ser filho da realeza, um nobre abastado europeu, pela sua fineza e elegância. Carregava aquela bandeja com tal equilíbrio e gracejo que quando nos servíamos de sua água sentíamos um gosto de paz sendo ingerida.

Mas o seu Borges servia como um vassalo aos seus soberanos, servia com tanta dignidade que eu sempre me questionava quem era o sábio da sala, quando o seu Borges entrava finamente alinhado, com o seu rosto arqueado para não igualar os seus olhos aos olhos dos convidados, para servir grandeza e retirar a soberba do poder respirado nas taças e peças de porcelanas, mas seus olhos reluziam como olhos de ovelhas no campo do Senhor.

Seu Borges gostava de ler, às vezes que nos encontramos na copa ele estava com um livro na mão. A última vez que o vi, ele estava lendo um livro de Leonardo Boff chamado Saber cuidar. Aproveitou, depois que me cumprimentou com o seu adorável “bom dia”, para me contar algumas histórias dos seus 50 anos de servidor público, na função de garçom do Palácio Rio Branco. Eu, quieta e escutando aquela voz de pássaro manso cantando bem baixinho, só poderia saber que o Seu Borges era grande demais para caber naquele corpo fino, seria também um filho do “Cristo Cósmico”? Ele não tinha ideologia, era um funcionário público essencial à função do Estado.

Seu corpo já parecia cansado e exausto daquela rotina. Quando o expediente terminava, ele vestia sobre a camiseta branca uma camisa quadriculada de botão, que deixava aberta, ficando bem ao estilo para um senhor de idade. Ele estava sempre com o uniforme bem cuidado, mas visivelmente se percebia que o tecido desgastado não era o dos melhores fios para lhe vestir o corpo.

Gente assim, como o Seu Borges, eu conheci poucos, até porque esse tipo de gente é de espécie rara, alguns se chamam Francisco, como o Seu Borges. Tomás Celano, frade católico medieval da Ordem dos Franciscanos da Igreja Católica, poeta e escritor de uma comuna italiana de Celano, disse que São Francisco amava nos outros a santa simplicidade, filha da graça, irmã da sabedoria, mãe da justiça. A santa simplicidade não busca a casca, mas a medula, não o invólucro, mas o núcleo, não muitas coisas, mas o muito, o sumo e estável bem. Seu Borges também era Francisco e era um homem simples.

Eu entendia, quando ele falava do tempo, que o Palácio tinha uma imagem atemporal. Serviu ao Wanderley Dantas, Geraldo Mesquita, Joaquim Macedo, Nabor Júnior, Iolanda Fleming, Flaviano Melo, Edison Cadaxo, Edmundo Pinto, Orleir Cameli, Jorge Viana, Binho Marques, Tião Viana e Gladson Cameli.

Não tinha preferência por governadores pois todos se sentaram na insígnia cadeira maior do Estado e isso era o bastante para ele, embora contasse algumas curiosidades, me pareceu que ele admirava aquelas autoridades que o tratavam fielmente pelo nome, pois assim ele se sentia presente, ocupando um lugar no espaço vazio do lugar. O trabalho era algo muito dignificante na sua modesta vida de garçom.

Hoje, às 6 horas da manhã do dia 2 de agosto de 2020, Seu Borges faleceu. O governador Gladson Cameli, que tinha respeito de monge para com o Seu Borges, não será mais servido por ele. Esse homem simples, que em vida já tinha se libertado dos desejos do mundo material, quieto na sua função, conhecia muito bem os corredores do palácio, era um homem culto, sabia ler. Cameli lutou por uma aposentadoria digna para os dignos funcionários do Palácio e conseguiu.

Coincidência ou não, na data de hoje ocorre a festa franciscana da Porciúncula, chamada de Festa do Perdão de Assis. Conta-se que certa noite, por volta de 1216, Francisco estava em oração em uma igrejinha em Porciúncula, perto de Assis, e repentinamente o lugar se iluminou com uma vivíssima luz e Francisco viu sobre o altar o Cristo e a sua Mãe Santíssima. Naquela noite ele pediu ao Pai que todos que fossem ali, mesmo que fosse um mísero pecador, a todos quantos arrependidos e confessados, lhes concedesse generoso perdão. Tempos depois, Francisco restaurou a capela e a dedicou a Nossa Senhora dos Anjos.

Hoje é o dia da Festa do Perdão e de Nossa Senhora dos Anjos na Ordem Franciscana Secular. Foi em Porciúncula, segundo o Frei Régis Daher, que São Francisco fundou a ordem e entregou a sua vida a Deus. Os franciscanos se perguntam: “O que temer? Nada. Aqueles que se unem a Deus obtêm vida sem morte”.

Descanse na santa simplicidade, Seu Borges. O Acre inteiro lhe agradece tamanha gentileza.

 

Bethe Oliveira

Economista, servidora pública e autora do livro Loucas e Bruxas, Bruxas e Loucas, contos e poeminhas.

Compartilhe:

WhatsApp
Facebook
Twitter