Livro vai relatar encontro de estruturas geométricas que desafiam a ciência e estão sendo ameaçadas pelo avanço da ocupação do território acreano
O homem mede a terra desde que se deu conta de sua existência sobre ela. Por razões econômicas, religiosas ou definição de território, é uma dessas necessidades humanas que nasceu como o próprio homem. Pode parecer elucubração ou exagero, mas os povos que habitavam a região onde se formaria o Acre, no vasto mundo onde surgiria a Amazônia, de alguma forma se adiantaram aos maiores gênios da história da humanidade e aos próprios gregos.
Quando Euclides, Arquimedes e Apolônio, Prócolo e Pitágoras – que deram origem à geometria, com este último sendo definitivo como seu teorema do triângulo-retângulo – ainda se esgoelavam nas Ágoras em intermináveis debates sobre as formas, por aqui, fossem quem fossem os habitantes destas terras, não só conheciam círculos, quadrados, triângulos e retângulos como os praticavam com o trabalho – e que trabalho! – de revolver a terra para formar o que, faz 30 anos, a ciência chamou de Geoglifos da Amazônia. Não se sabe ao certo quem e quais eram os objetivos desses povos na criação das estruturas – tampouco sua utilidade – cujos vestígios encontrados no Acre desafiam e intrigam a humanidade. Há especulações as mais diversas sobre as formas. As definições mais aceitas pelos pesquisadores é que aquelas formas, os quadrados e círculos na terra, foram feitos em madeira ou adobe como estruturas defensivas, verdadeiras trincheiras prevenindo ataques de inimigos ou como palco para atividades ritualísticas
Mas essas formas estão correndo risco de ser destruídas antes mesmo de totalmente pesquisadas. É o que alertam os professores Denise Schaan, arqueóloga da Universidade Federal do Pará (UFPA), e Alceu Ranzi, da Universidade Federal do Acre (Ufac), que estudam os fenômenos. Ranzi é o pesquisador que, há 30 anos, estava ao lado dos professores que encontraram as primeiras estruturas e que tem dado notícia ao mundo de que, no Acre, existe algo tão impressionante quanto as construções de pedras de civilizações extintas e desconhecidas como os templos Maias, as fortalezas de Machu Picchu, no Peru, e outras tão misteriosas quanto as técnicas empregadas para a construção das pirâmides do Egito.
Essas formas e mistérios, no entanto, estão ameaçados pela ação do homem, dizem os pesquisadores num livro no qual vão abordar o assunto e chamar a atenção para a necessidade da preservação e de mais pesquisas sobre quem e o que fazia no Acre muito séculos antes do surgimento de um certo Jesus Cristo. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Então os Geoglifos no Acre vão ser tratados em livro?
Denise Schaan – O que a gente fez foi reunir vários artigos, alguns que já haviam sido publicados, com todas as informações que a gente tem até hoje a respeito dos Geoglifos. A gente também esta publicando alguns artigos novos que foram feitos especialmente para o livro. A idéia é um livro que seja utilizado por estudantes – e gostaríamos de tê-lo editado mais cedo -, mas também uma obra para o grande público, de linguagem técnica mas fácil de ler e acessível a todo mundo. No início tem um artigo sobre a arqueologia do Acre, que tem todo um material histórico, com todas as pesquisas feitas até hoje.
Vamos começar pelo começo: como se deu a descoberta dos Geoglifos no Acre? Quando foi isso?
Alceu Ranzi – Foi em 1977.
O descobridor foi o senhor, então?
Alceu Ranzi – Eu estava presente. O chefe da equipe era o doutor Ondemar Dias, cujo artigo está presente no livro contando essa história…
Denise Schaan – … foi a primeira pesquisa arqueológica feita no Acre. Os técnicos vieram para cá para fazer um levantamento de uma região sobre a qual não se sabia nada.
Mas vocês, pesquisadores, tinham algum indício, alguma pista do que encontrariam?
Denise Schann – Não, a gente não sabia nada. A pesquisa foi feita justamente porque a gente não conhecia nada. Foram encontrados então alguns vestígios ao longo do rio, eram sinais de que se tratava de vestígio de alguma civilização antiga. Então, ele [Ondemar Dias] contatou com as autoridades, com a Universidade Federal do Acre (Ufac). Lá na Ufac indicaram o Alceu para acompanhar o professor.
Alceu Ranzi – Na época eu era estudante de Geografia, há 30 anos…
Denise Schaan – Eles então descobriram alguns sítios arqueológicos, algo em torno de 50, e entre eles alguns que tinham essas estruturas, essas valetas, essas marcas que a gente não sabia o que era e na época chamávamos de Geoglifos.
E quem foi que batizou isso de Geoglifos?
Denise Schann – Foi o Alceu.
Por quê ?
Alceu Ranzi – Eu assim batizei por causa do aéreo. Na época, em 1977, nós estávamos todos no chão… Víamos a coisa mas não tínhamos a visão aérea. Quando eu vi do avião, alguns anos depois, percebi que aquilo era não mais aquela estrutura, mas algo que poderia ser chamado de Geoglifo, algo feito na terra, em grande dimensão.
Uma pergunta para o professor Alceu: depois de 30 anos, depois de tantas pesquisas sobre o assunto, o senhor não tem nem um palpite do que se trata nem de quem construiu isso?
Alceu Ranzi – Sempre que me perguntam algo assim, eu digo que os Geoglifos hoje, no estado atual, são muito mais perguntas do que respostas. São muitas questões postas que nós temos que resolver com as pesquisas futuras.
Denise Schaan – Na época em que eles viram isso pela primeira vez, em 1977, chegaram à conclusão de que seria uma estrutura construída de forma defensiva, algumas hipóteses de alguma aldeia fortificada. Mas a quantidade, a questão da dimensão, que é uma coisa que a gente foi descobrindo com o tempo, faz com que aquelas idéias iniciais da gente comecem a mudar na nossa cabeça. Quando a gente vê a dispersão disso, numa região tão grande, é natural que queira descobrir mais sobre o que e quem fez isso.
Alceu Ranzi – Eu fico pensando no esforço que fizeram para erguer isso; quantos anos, quantos homens trabalharam nisso sem logística, sem tecnologia…
Denise Schaan – Fiz alguns cálculos e concluí que, em alguns deles, eram necessárias no mínimo umas 100 pessoas trabalhando por meses a fio para construir algumas dessas estruturas. Eu acho que não vamos responder a todas as perguntas que nós mesmos fazemos porque, ao que parece, essas estruturas não eram coisas que tinham uma função única. Eu não vejo assim. A gente observa que essas estruturas têm formato diferente, vestígios diferentes – em alguns a gente quase não encontra cerâmica, em outros há um pouco mais de cerâmica e em outros tem um tipo de solo que a gente pode perceber que foi modificado, que é solo resultado de ocupação humana, e outros não tem essas informações. Então, essas estruturas tiveram funções diferentes. A gente só vai poder descobrir isso quando conseguir escavar esses vários sítios. Por enquanto, a gente só tem uma primeira idéia da distribuição regional desses sítios.
Alceu Ranzi – Geograficamente, a distribuição que nós temos hoje é que essas estruturas estão distribuídas de Xapuri a Boca do Acre, nessa linha. Tem daqui até Extrema, em Rondônia.
Denise Schaan – Nós não temos mapeamento da área, mas temos indícios de que há também até Sena Madureira.
Além dos Geoglifos, vocês encontraram também cerâmica, algo que possa garantir que isso é obra da ação humana?
Denise – Há muita cerâmica sim.
E as cerâmicas são do mesmo período das escavações?
Alceu Ranzi – São. Nos estudos que fizemos já este ano, encontramos muito material de cerâmica.
Vocês não temem que essas estruturas sejam destruídas antes mesmo de serem totalmente pesquisadas? Há informações de que, em muitas fazendas, há quem destrua as estruturas por temer que as terras sejam desapropriadas, coisas assim. O que vocês acham das atividades empresariais nas áreas onde os Geoglifos estão localizados?
Alceu Ranzi – No nosso entendimento, a sociedade precisa conhecer e pesquisar porque, se não conhecer, há o risco de se ir a uma área dessas e abrir uma estrada em meio a um Geoglifo desses, como já está acontecendo.
Denise – Há casos em que o fazendeiro aproveita as escavações para fazer bebedouros de animais. Outro que utilizou a estrutura para fazer plantio dentro. Tem vários casos assim.
Um caso típico parece ser o Álcool Verde. Ao que parece, há Geoglifos onde está sendo feito o plantio de cana, e essa seria uma das razões pelas quais o Ministério Público quer ver cancelada pelo Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac) a licença ambiental que permite a operação da usina. Como resolver esse impasse?
Alceu Ranzi – Aliás, foi ali, onde hoje é a Álcool Verde, onde era a fazenda Palmares, que há 30 anos nós encontramos as primeiras estruturas. A recomendação que nós temos feito é que, no caso da Álcool Verde, como são milhares de hectares, essas estruturas correspondem a um ou no máximo dois hectares. Então achamos que as empresas deveriam defender essas áreas onde estão os Geoglifos.
Denise – O proprietário nunca faz o levantamento arqueológico de sua área se os órgãos públicos não pedem. Ele trabalha com a lógica do lucro. Está no papel dele. Os órgãos que trabalham com o licenciamento é que têm que exigir isso. Se eles forem exigidos e trabalharem dentro das normas, podem utilizar essas estruturas inclusive como atração turística.
Alceu Ranzi – No caso da Álcool Verde, sugeri que eles colocassem na propaganda da empresa que são uma empresa responsável porque têm preocupação com isso. Se fizerem isso, será algo positivo para eles, para qualquer empresa. Vamos poder dizer: nós temos responsabilidade com o patrimônio nacional; onde tem Geoglifo a gente não planta cana, não passa o trator.
Denise – Serviria de marketing para eles. E a área que a gente quer que preserve é uma área pequena em relação à área toda.
Professor Alceu, o senhor disse que, em relação a isso, tem mais perguntas a fazer do que respostas a dar. Mas pergunto: como é a visão da comunidade científica internacional sobre isso? O que dizem os cientistas da área que tiveram contato com os Geoglifos?
Alceu Ranzi – Na verdade, os primeiros contatos foram de cientistas internacionais. Os brasileiros permaneceram meio silenciosos sobre o assunto até a chegada da professora Denise, mas o primeiro a ter estado aqui foi o doutor Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida, que trabalha no Xingu. Ele me disse: “Alceu, isso é uma maravilha, mas eu não posso te ajudar porque estou no Xingu. Você tem que arranjar outros parceiros”. E outros parceiros foram pesquisadores da Finlândia. E a primeira declaração do doutor Parssinem, que agora é co-autor do livro, é que isso certamente poderá ser considerado patrimônio da humanidade. Foram essas as palavras deles.
A importância desses monumentos poderia ser comparada, na avaliação de vocês, a Machu Picchu, no Peru, ou às pirâmides do Egito?
Denise Schaan – A gente costuma prestar muita atenção para as construções de pedra. Em toda a história da humanidade, a gente vê que, em diversos lugares, as populações construíram essas coisas monumentais, as pirâmides, as cidades de pedra, templos como aqueles totens da Ilha de Páscoa, as pirâmides do México, as pirâmides do Egito, da América Central. São todas construções monumentais que instigam a curiosidade das pessoas. Os Geoglifos do Acre, em termos de monumentalidade, podem ser comparados a essas construções que intrigam a humanidade. Isso desmente a tese de que esta foi numa região onde não havia grande movimentação populacional no passado.
Alceu Ranzi – Para realizar isso, esses povos tinham que morar aqui. Não viviam de passagem. Não eram caçadores, não eram nômades. Eles ficaram sedentários aqui e tiveram que se organizar para sobreviver durante centenas de anos.
Fonte: Página 20