O lado penoso da simulação de virtudes

Dia desses estava revendo um episódio do desenho satírico South Park chamado “San Francisco Smug”. Quando assisti pela primeira vez, na adolescência, não entendi muita coisa, mas achei engraçado. Para contextualizar, o personagem Stan Marsh, uma criança de nove anos, queria que seu pai comprasse um carro híbrido para, segundo ele, “salvar o planeta” da poluição dos carros comuns.

Para isso, criou uma música chamada “Vamos, gente”, divulgada nas rádios de South Park, o que estimulava os moradoras da pequena e montanhosa cidade do Colorado a aderir à compra em massa do veículo movido por um motor de combustão interna que reduzia os poluentes na atmosfera.

O que era para ser uma bonita atitude de conscientização virou um verdadeiro caos, com uma série de acontecimentos surgidos a partir da tal musiquinha, que se alastrou pelo país e impactou diretamente a cidade de São Francisco, que no desenho foi reduzida a pó e literalmente sumiu do mapa no fim do episódio.

O desenho se utiliza do humor escatológico e dos traços toscos dos personagens para dar o contexto de muitos “simuladores de virtudes”, ou seja, pessoas que passam uma imagem politicamente correta, que abraçam causas como aquecimento global, bons tratos aos animais e defesa de minorias, mas que na realidade utilizam esses artefatos como um escudo poderoso para encobrir suas falhas.

Resumindo: por serem militantes, se acham superiores aos outros, julgam muito mais que a média das pessoas e agem com cada vez mais pedância à medida em que englobam mais e mais pautas. Esse ar superior ocorre também em alguns tipos de pessoas religiosas, que, por julgarem ter uma fé forte, acabam se achando melhores do que qualquer um que não comungue de seus preceitos.

Em South Park, o pai de Kyle, em protesto pela demora da população local em aderir ao veículo, muda para São Francisco, a “cidade dos híbridos”, segundo a série. Lá ele se assusta com vários comportamentos estranhos, como pessoas cheirando seus próprios peidos e crianças da primeira infância usando drogas pesadas para “suportar a dor de ter pais tão idiotas”. Um misto de hipocrisia, narcisismo e autodestruição é representado em várias cenas, que culminam com a formação da “smug”, um furacão com o som da fala do discurso de George Clooney no Globo de Ouro sobre o meio ambiente.

Essa smug foi formada em São Francisco porque as pessoas ficaram tão preocupadas em comprar híbridos e participar ativamente de causas, que acabaram pecando em outras, por relaxamento ou pelo tal do escudo protetivo de ideias fofinhas que defendiam apenas para o gozo interior, aceitação e a possibilidade de fazer parte de um grupo supostamente superior aos outros.

Um exemplo claro disso são ativistas como Leonardo DiCaprio, que pregam pautas ambientais mas têm jatinho particular (um veículo com alto poder de poluição), ou os artistas que falam para a população “Fique em casa” para se protegerem na pandemia, mas eles mesmos vivem viajando e fazendo festas clandestinas.

Assim como o feminismo e os direitos civis, todos devemos nos posicionar a favor do bem comum e da equidade de ações, mas o que está ocorrendo de uns anos pra cá são exageros que nada acrescentam ao debate, muito menos à prática. Servem apenas para separar as pessoas e, pior, afastar ainda mais da punição os que deveriam realmente ser combatidos (ex: racistas, abusadores de mulheres), ao generalizar qualquer tipo de ação contrária, cancelando ou acabando com a vida de pessoas que poderiam ser simplesmente ouvidas e incentivadas a melhorar.

Conheci vários ativistas e posso afirmar, com toda a certeza, que eles não são melhores que a média das pessoas. Arrisco dizer que é o contrário – na maioria dos casos, eles são até piores. Recentemente tive contato com um cara super bem informado defendendo pautas ambientais numa roda de conversa, mas o que me chamou atenção foram duas coisas: ele não deixava ninguém falar, tipo um monólogo, e se portava como uma espécie de divindade superior magnânima, e todos nós éramos meras bactérias acéfalas.

Simular virtudes nada mais é do que ter atitudes externas que dizem para a sociedade como essa pessoa é boa e pura, pois ela está sempre “do lado certo”, quando na verdade ela mesma não pratica o que fala. O famoso “faça o que eu digo e não faça o que eu faço”.

Essa tática acaba por mascarar várias falhas e desvios que o sujeito poderia resolver através do enfrentamento e aceitação interna, mas por querer ser virtuoso full time – o que, francamente, é impossível -, acaba por se atolar mais e mais num mundo paralelo, fictício, em que deve pagar um pedágio imaginário quando alguém está vendo, mas é só estar longe dos holofotes que a verdade aparece. Assim como um charlatão barato, o simulador de virtudes não se interessa na verdade dos fatos, e sim em não ser pego.

Isso acaba por gerar uma série de consequências no mundo dos anos 2020, com o talento puro e simples sendo massacrado por uma padronização de tudo, músicas ruins e sem conteúdo, filmes sem roteiros inteligentes e cada vez mais tolhidos pelo politicamente correto, pessoas sendo jogadas umas contra as outras por pensarem diferente, falta de diálogos profundos e por aí vai.

A tal da “smug” do South Park acontece todos os dias, mas o poder do politicamente correto, o pai da simulação de virtudes, possui tentáculos tão proeminentes que o estrago já foi feito. A impressão que eu tenho é que as coisas boas de pautas relevantes já chegaram em um bom nível, restando apenas um chorume que valoriza a idiotização das pessoas e um sistema que utiliza isso como forma de controle. Mas isso é assunto para outro artigo…

Mauro Tavernard é assessor de comunicação da Secretaria de Estado de Indústria, Ciência e Tecnologia (Seict)

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