O desafio de recomeçar

Jovens privados de liberdade encontram na educação e na formação profissional um motivo para construir um novo projeto para o futuro

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No desenho, o jovem demonstra o sonho de uma nova oportunidade na sociedade (Foto: Angela Peres/Secom)

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Nas unidades, reeducandos recebem atendimento psicológico (Foto: Angela Peres/Secom)

Quadras de esporte, piscina, atividades orientadas, cursos profissionalizantes, psicólogo, assistente social, refeição balanceada. O lugar bem que poderia ser comparado a uma boa escola não fossem os muros altos e as grades dos dormitórios. Nenhum deles quer estar ali, mas a grande maioria já se deu conta de que é preciso colaborar para conseguir sair e recomeçar uma nova vida, não de onde parou, mas a partir do aprendizado de buscar superação ao passar meses e até anos privados de liberdade em um período da existência em que ser livre é a grande meta.

Alguns chegam ainda crianças, outros estão perto de completar a maioridade, entretanto todos os meninos e meninas que estão em unidades de recuperação socioeducativas têm que nascer para uma realidade nunca imaginada por eles ou pela família. É aí que entra o projeto pedagógico adotado pelo Instituto Socioeducativo (ISE) implantado pelo Governo do Estado e ainda em fase de estruturação nos Centros Socioeducativos como o Aquiri, inaugurado há cinco meses.  

Primeira unidade do país a ser construída dentro dos padrões exigidos pelo Sistema Nacional de Socioeducação (Sinase), o CSE Aquiri prioriza o investimento na educação e o desenvolvimento pessoal de cada adolescente na construção de um novo indivíduo e integra o complexo de unidades socioeducativas do Acre que tentam vencer diariamente os obstáculos no processo de implantação de modelo adotado pelo Governo do Estado para a recuperação de adolescentes.

Verde-amarelo-azul – Após passarem pela Unidade Integrada de Proteção (UIP) Santa Juliana, primeira etapa do processo de reeducação social, adolescentes de 12 a 18 anos são encaminhados para o Centro Socioeducativo Aquiri. O número de internos é flutuante, mas até o fim do mês de setembro encontravam-se 82 meninos.

Ao chegar, eles ficam hospedados na casa amarela, local reservado para quem apresenta maior resistência em se adaptar às novas regras. Ao alcançar um novo patamar nas relações interpessoais mudam para a casa verde, que representa o processo intermediário e, por fim, alcançam a casa azul, última etapa antes de serem encaminhados ao Centro Socioeducativo Acre, unidade pioneira construída há dois anos que recebe os jovens durante o processo de finalização da pena quando estão prestes a voltar ao convívio da família e da sociedade.

O tempo deste percurso depende do empenho individual, uma grande prova de superação e autodisciplina. "São três os pilares: fazer, aprender e conviver. Aos poucos eles vão adquirindo habilidades relacionais e avançando", explica o presidente do ISE, Cássio Silveira Franco.

Para cada casa uma série de atividades: na primeira, práticas desportivas e escolarização; a segunda tem os recursos da primeira com incremento na escolarização e na terceira, as ações das primeiras mais cursos profissionalizantes dentro da própria unidade.  Rotina, disciplina, rodas de conversa entre si, com técnicos e profissionais de diversas áreas ajudam a fortalecer o propósito dos pilares da educação dos CSEs e oportuniza a discussão de temas como ética, sexualidade, cidadania, autoestima, relações humanas, abordados conforme a necessidade deles e da instituição.

Através do Plano Personalizado de Atendimento as demandas do jovem e de sua família são identificadas, e caso haja necessidade, eles são encaminhados aos demais projetos de Governo. Levando em conta fatores como comportamento, responsabilidade, disciplina e compromisso, o interno passa pelas fases do processo de socioeducação, com acompanhamento de equipe multidisciplinar promovendo a evolução do reeducando de acordo com sua capacidade de fazer escolhas e assumir compromissos.

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Atividades lúdicas durante cursos e oficinas (Foto: Angela Peres/Secom)

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Centro construído dentro dos padrões exigidos (Foto: Sérgio Vale/Secom)

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Dormitório de um dos centro sócioeducativos (Foto: Sérgio Vale/Secom)

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Nas salas de aula, cursos regulares e de inglês (Foto: Angela Peres/Secom)

De volta à escola

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As aulas acontecem em salas próprias para o aprendizado (Foto: Angela Peres/Secom)

Quase 80% dos meninos que chegam ao CSE Aquiri têm escolaridade mínima, 70% deles têm entre 15 e 18 anos. A grande maioria apenas com a 4ª série do Ensino Fundamental. Matriculados em programas de aceleração de aprendizagem muitos saem com a formação escolar básica completa. Como o adolescente Fábio (nome fictício para preservar a identidade do jovem) interno do CSE Acre que está terminando o Ensino Médio.

No momento da entrevista montava slides com fotografias que marcam, segundo ele, os "melhores momentos vividos na unidade". Melhores momentos? Ao ser questionado como seria possível encontrar fatores positivos em situações desta natureza, Fábio responde que se surpreendeu com tudo o que viu e aprendeu na unidade. "Pensei que fosse ficar aqui preso, no tempo determinado pelo juiz e só, sem nenhuma atividade educacional, mas aprendi muita coisa", conta ele que fez curso de Assistente Administrativo e Informática. A história dele não é muito diferente dos demais. Aos 12 anos usava drogas, bebia, frequentava boates. "Estou correndo atrás do tempo perdido. Quero fazer Direito, tenho esse sonho desde criança e agora estou mais perto de realizar".

No CSE Aquiri os jovens são matriculados em programas de aceleração para conclusão do ensino básico, têm aulas de Educação Física duas vezes por semana, participam do projeto Aprendendo e Ensinando com o qual têm a oportunidade de repassar aos colegas o aprendizado adquirido. No CSE Acre, prédio localizado ao lado, os meninos desenvolvem o projeto Linha sobre Linha, têm aulas formais por meio do programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA), atividades esportivas como futevolei, futebol, tênis de mesa, recursos da Sala de Multimeios.

{xtypo_quote_right}Estou correndo atrás do tempo perdido. Quero fazer Direito, tenho esse sonho desde criança e agora estou mais perto de realizar,
Interno{/xtypo_quote_right}Para fortalecer ainda mais a base deste trabalho, que tem a educação como ponto convergente, um convênio inédito entre o Instituto Socioeducativo (ISE) e Senai, Senac e a ONG Vertente foi assinado em setembro para facilitar o acesso desses jovens e de outros membros da família ao ensino profissionalizante. É o Programa de Capacitação Profissional de Adolescentes idealizado para envolver não só os jovens como também os familiares.

No Senac estão em andamento os cursos de Frentista, Auxiliar Administrativo, Garçom, Manicure e Doces e Salgados. Meninos e meninas internos e em condição de Liberdade Assistida das CSE Acre, Aquiri e Mocinha Magalhães, como seus irmãos e pais estão matriculados nos cursos oferecidos para promover qualificação profissional e uma opção de geração de renda para a família. Vandressa Silva de 15 anos faz pela primeira vez um curso profissionalizante e diz ter consciência da importância desta oportunidade para se estruturar financeiramente. Ela é uma das beneficiadas pelas vagas destinadas às famílias dos jovens reeducandos. "Meu irmão está saindo do Centro. Está esperando uma vaga pro primeiro emprego. Lá em casa só minha mãe trabalha. Acho que não teria chance de fazer um curso desses se não tivesse sido incluída nesse programa", diz.

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Muitos nunca tinham tido acesso a um computador e no centro, recebem aulas de informática (Foto: Angela Peres/Secom)

Matriculado no mesmo curso, Jamil (nome fictício) de 18 anos, cumpre pena em sistema de Liberdade Assistida tinha no currículo apenas dois cursos: um de informática e um de marchetaria. Ele diz que hoje tem o apoio da família e quer mudar de vida. "Sei que sou um privilegiado e quero mudar, por isso esse curso é importante".  O convênio entre Senac e ISE prevê a abertura de 150 vagas em Rio Branco e Cruzeiro do Sul.

Para a diretora do Senai, Solange Chalub, a parceria é ação comum da instituição para promover a profissionalização de pessoas em situação de vulnerabilidade social. "Estamos sempre à disposição para assinar convênios voltados para a educação profissional. Acreditamos que esta é a nossa contribuição para o desenvolvimento social".

Não importa qual o motivo que levou meninos e meninas a uma unidade de recuperação social e sim a motivação que os farão sair em busca de um novo caminho, longe das armadilhas que os colocam em situação de privação de liberdade. É para isso que os convênios com instituições de ensino profissionalizante estão sendo firmados representando a primeira porta a ser aberta após o cumprimento da medida socioeducativa determinada pela Justiça.

Família é ouro

"Diz pra minha mãe não me abandonar", pede um menino de 15 anos que entra pela primeira vez em uma das unidades de recuperação social do Estado para cumprir medida socioeducativa. Esta é uma das reações mais frequentes manifestadas por adolescentes no momento de confrontação com a realidade, quando terão de deixar para trás as referências familiares e a liberdade. Sensação de abandono, medo da solidão e resistência inicial às regras são sentimentos experimentados no início do processo e que são compartilhados entre os jovens e as quase crianças na mesma condição.

{xtypo_quote}Família aqui é ouro. Qualquer notícia de fora, carta, um abraço fortalece o sentimento de que ele não está só. Às vezes as mães choram de um lado e eles de outro
Maria Freire, psicóloga {/xtypo_quote}

Na base, apoiando e em constante movimento de capacitação para cumprir a lei e atender às exigências específicas de cada caso, estão dezenas de profissionais entre os quais professores, pedagogos, psicólogos, assistentes sociais, técnicos de áreas diversas. Mas nada disso substitui as notícias vindas de fora, um afago que já se julgava perdido. Lauro*, 17 anos, está há três meses no CSE Aquiri e não vê a hora de voltar para casa. "Muitas vezes esqueço que estou aqui, mas meu objetivo é sair logo", diz. A psicóloga Maria Freire diz que o rompimento brusco causa a sensação de abandono. "Família aqui é ouro. Qualquer notícia de fora, carta, um abraço fortalece o sentimento de que ele não está só. Às vezes as mães choram de um lado e eles de outro", conta a psicóloga acrescentando que ao traçar propósitos a partir da perspectiva da não repetição do ato infracional, do desenvolvimento do amor por si mesmo, da apropriação de valores positivos, o adolescente não fere mais ninguém.

Casa de meninas

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Internas do Mocinha Magalhães participam do curso de Doces e Salgados (Foto: Gleilson Miranda/Secom)

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Mãe de uma adolescente interna, Maria de Lourdes também participa do curso e pensa em investir em um próprio negócio (Foto: Gleilson Miranda/Secom)

Flores no muro, um jardim, uma velha casa. O lugar lembra um centro de recuperação social pelas grades nas portas. É o CSE Mocinha Magalhães onde estão atualmente 14 meninas. Única unidade socioeducativa feminina, a CSE Mocinha Magalhães recebe meninas de todo o Estado. O local irá passar por uma reforma e ampliação até o ano que vem. O processo licitatório foi aberto e o projeto inclui a construção de uma brinquedoteca, um berçário e cozinha específica para panificação.

Do grupo reunido na cozinha vêm risadas e conversas animadas, mas todas estão atentas às orientações do professor do curso de Doces e Salgados. Entre elas, professoras, funcionárias e três mães. Apesar das condições do prédio, ali a proposta pedagógica está implantada por uma equipe coesa. "No Aquiri a proposta está sendo construída. Aqui não, já está fortalecida, apesar de não ter ainda a estrutura física adequada", observa a coordenadora pedagógica Sandra Amorim.

A diretora da CSE, Roza Celi Batista, diz que o índice de reincidência caiu muito em um ano. Hoje é considerado muito baixo entre as meninas, quase inexpressivo. Algumas delas chegam à casa pela segunda vez mas não ficam muito tempo. Como é o caso de Val*. Comunicativa, alegre, ela se destaca no grupo. Está interessada em aprender, está interessada em sair. Até o dia 10 de outubro estará fora da casa e de certa forma lamenta não poder fazer o curso de manicure. "Nunca imaginei que ia poder fazer um curso desse nível. Quando sair daqui quero colocar em prática".

O curso, oferecido por meio do Programa de Capacitação Profissional de Adolescentes, tem vagas para mães. Maria de Lurdes têm quatro filhos, entre eles Francisca* que cumpre medida socioeducativa. Hoje, sem trabalho e sem renda ela quer iniciar uma nova atividade. "Além do curso ser muito bom, ainda posso ficar perto da minha filha. Quando sair daqui vou fazer essas receitas pra vender", garante.

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