Por Roseneide Sena*
Nos últimos dias fiz uma retrospectiva em minha atuação profissional. Quase nunca fazemos isso, geralmente fica tudo no automático ou apenas quando atualizamos o currículo. Aliás, já atualizou o seu esses dias? Recomendo que faça isso sempre, não somente quando precisar utilizá-lo. Enfim, essa reflexão serve bastante para trazer ao tempo presente.
São exatos 20 anos atuando em projetos, e me designo apaixonada por projetos de desenvolvimento, especialmente pela capacidade de transformação social e econômica que eles proporcionam nos territórios e nas pessoas.
Minha primeira experiência foi em 2002, quando atuei no Projeto de Desenvolvimento Tecnológico Regional – DTR, numa parceria BID, CNI e ABDI. Uma experiência que elevou minha sensibilidade e meu entusiasmo em iniciativas de investimentos sustentáveis e negócios de impacto.
A partir desse momento, ativei minha percepção e comecei a valorizar o potencial que meu estado e minha região possuem: sim, o Acre existe. Não só existe como possui elevado repositório de soluções baseadas na natureza, com potencial inestimável para negócios de impacto, capaz de oferecer soluções mais inclusivas e mais regenerativas.
Essa consciência cresceu. Busquei mais referências profissionais, ampliei meus conhecimentos e minha rede de contatos, direcionei estudos e fiz diversas descobertas que estão bem aqui, no Acre!
Enquanto todos discutem mudanças climáticas, redução de emissões de gás de efeito estufa, créditos de carbono, finanças e investimentos sustentáveis – aliás, será que Larry Fink – CEO da BlackRock, maior gestora de recursos do mundo já experimentou nosso açaí? Rsrsrs…… Ele está precisando, especialmente pelas declarações nada simpáticas que fez ao mundo, em que afirmou que os donos do dinheiro não ligam para nada disso, ao anunciar que a BlackRock passará a votar contra a agenda do clima nas assembleias corporativas neste ano por serem muito “radicais”.
Assim como ele, muitos insistem em dizer que não existe alinhamento entre o meio ambiente e interesses financeiros. E digo mais: o dinheiro é a solução para muitos problemas, inclusive para melhorar a vida dos povos tradicionais que estão nas florestas defendendo o estoque de carbono para as grandes poluidoras.
E essa tem sido a luta dos estados da Amazônia para garantir mais apoio e dinheiro no combate ao desmatamento ilegal: no último 10 de maio, organizações brasileiras enviaram uma Carta Aberta ao Presidente Joe Biden e ao Congresso Americano pedindo apoio ao Amazon21 Act, fundo de US$ 9 bilhões que está sendo discutido pelo Congresso dos EUA para combater o desmatamento em países em desenvolvimento.
Mas o Estado do Acre tem feito mais. Você sabia que o Acre foi o primeiro estado brasileiro a receber recursos do Programa Global REDD Early Movers (REM) (REDD para Pioneiros, pela sigla em Inglês), que é uma iniciativa de remuneração de serviços ambientais baseada em resultados pela redução do desmatamento?
Essa iniciativa é viabilizada de forma conjunta pelos governos da Alemanha e Reino Unido, que premia nações comprometidas com a redução de emissões de CO2 por meio de ações de conservação de florestas. O Acre foi pioneiro na parceria, seguido do Mato Grosso, sendo os dois os únicos estados que implementam o Programa REM no Brasil.
O chamado REM Acre já tem garantidos cerca de €30 milhões do governo da Alemanha, por meio do Banco Alemão de Desenvolvimento (KfW), e o governo do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, por meio da Secretaria de Negócios, Energia e Estratégia Industrial (Beis). Os recursos não são depositados de uma única vez no caixa do Estado, são disponibilizados conforme os resultados de diminuição do desmatamento, ao longo da vigência de cinco anos do programa. O estado só receberá os valores se mantiver o desmatamento controlado.
O Programa REM Acre existe desde 2012 e em novembro de 2017 iniciou a Fase II, intensificando suas ações para projetos e iniciativas que reduzam o desmatamento e melhorem os processos de desenvolvimento sustentável.
Desde janeiro de 2022 o Programa REM Acre realiza a reestruturação do planejamento das ações, envolvendo as 15 instituições subexecutoras do Estado, desenvolvendo uma dinâmica para ações mais centradas nas comunidades beneficiárias do programa, priorizando os territórios em áreas críticas de desmatamento, atendendo a diretriz da Repartição de Benefícios.
O Programa REM Acre tem uma cobertura geográfica de ações em 100% dos municípios do estado, com forte atuação nas comunidades indígenas, extrativistas em territórios de unidades de conservação e em projetos de assentamento, incluindo a pecuária sustentável em diversas regiões do estado.
A lógica do Programa REM Acre está centrada na repartição de benefícios orientada em dois sentidos: fluxo e estoque de GEE (gás de efeito estufa). Não, não se desespere, continue lendo, porque é mais simples do que você imagina… Funciona assim:
- Se você era um produtor que, pelo isolamento, falta de conhecimento ou até por decisão própria, não se preocupava muito com essa coisa de desmatamento, não tinha condições e nem conhecimento de técnicas que não fossem a queima, a derrubada desordenada, mesmo correndo todos os riscos de fiscalização e até de saúde (a fumaça da queima adoece e causa graves acidentes), mas decidiu mudar e agora não desmata ou reduziu o desmatamento em sua área, opa, você agora precisa de incentivos para melhorar suas técnicas de produção e evitar o retorno ao fluxo de desmatamento.
- Se você está em áreas protegidas, se é um comunitário tradicional (extrativista, ribeirinho, indígena) nas áreas onde estão os maiores estoques de áreas de florestas, você é o guardião desses estoques e pode ser premiado por proteger essas áreas, evitando sua exploração desodernada e o desmatamento, beneficiando-se dos recursos para melhorar as condições de vida.
O Programa REM Acre beneficia diretamente mais de 820 extrativistas, como o pagamento regular de subsidío para a borracha e o murmuru, já atingindo um montante de R$ 4,5 milhões, até abril de 2022.
Se isso é suficiente? Ainda não. Se isso transformou a vida dos comunitários? Em pequenos passos, mas com resultados animadores.
Aliás, por falar em passos: você sabia que nossa borracha nativa está nos pés dos franceses? Sim, nos pés literalmente.
Sébastien Kopp e François-Ghislain Morillion fundaram a marca de moda ética Veja (conhecida no Brasil por Vert) em 2005. Eles têm trabalhado com seringueiros no Acre, pagando um preço justo para a produção da FDL (folha defumada líquida), que compõe as solas de seus tênis. Além disso, têm uma cadeia de fornecimento transparente e eficiente. São mais de 350 toneladas de borracha por ano, contribuindo com a renda de pelo menos 600 famílias, que recebem um valor diferenciado pela borracha nativa coletada, num fluxo contínuo de fornecimento e pagamento imediato, no ato da entrega.
José Rodrigues de Araújo é conhecido como “Doutor da Borracha”. Nascido na Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre, ele começou seu trabalho como seringueiro com seu pai, quando tinha 8 anos de idade. Aos 13, já extraía borracha por conta própria e fazia CVP (cernambi virgem prensada).
Atualmente, seus sapatos premiados também são vendidos na Europa, pela empresa holandesa Handprint Crafts.
Poderia citar mais uma “ruma” (acreanês = monte, amontoado) de outros casos, que até eu mesma ainda desconheço, porque agora que descobri o Acre, vou querer saber o que aqui existe. E você?
Roseneide Sena, chefe do Departamento de Gerenciamento do Programa BID na Seplag, é mestre em Administração e membro da Associação Brasileira de Pesquisa em Finanças e Investimentos Sustentáveis (Brasfi)