“O Acre é um pequeno laboratório para o mundo”, diz pesquisadora americana – entrevista

A pesquisadora Marianne Shmink autografa seu livro sobre a Amazônia para a Biblioteca da Floresta (Foto: Assessoria Biblioteca da Floresta)

A pesquisadora Marianne Shmink autografa seu livro sobre a Amazônia para a Biblioteca da Floresta (Foto: Assessoria Biblioteca da Floresta)

A Biblioteca da Floresta/FEM recebeu, na manhã da última terça-feira, 30, a visita da diretora do programa de desenvolvimento e conservação tropical da Universidade da Flórida (EUA) Marianne Schmink. Amiga do Acre há quase três décadas, ela esteve acompanhada pelo pesquisador Jeff Hoelle, que estuda a cultura da pecuária na região.

Schmink, que não visitava a Biblioteca há pelo menos quatro anos, encantou-se com a réplica da Casa do Seringueiro, no segundo piso, e com as “Mensagens para o Futuro”, baseadas em uma carta escrita pelo líder seringueiro Chico Mendes para os jovens do ano de 2120.

A pesquisadora doou ao acervo da instituição o livro “Conflitos Sociais e a Formação da Amazônia”, escrito em parceria com Charles H. Wood. A obra, lançada em 1992 e que só agora ganhou edição em português, é resultado de um estudo realizado no interior do Pará e iniciado 15 anos antes de sua publicação – ocasião em que veio ao Brasil pela primeira vez.

Foi durante esse trabalho que Marianne tomou conhecimento da luta dos seringueiros acreanos contra o desmatamento. O contraste entre a passividade dos povos tradicionais do Pará e a resistência dessas mesmas populações no Acre diante do avanço da pecuária despertou seu interesse em conhecer nosso estado. A partir daí, a relação da pesquisadora com o Acre passa a se confundir com sua biografia (saiba mais na entrevista abaixo).

Entre 1989 e 2004, ela desenvolveu uma pesquisa juntamente com o ex-secretário de Estado de Fazenda, Mâncio Lima, sobre a evolução econômica, social e cultural da capital acreana. O trabalho virou livro e foi lançado em 2009 com o nome “Rio Branco: cidade da florestania”.

“É uma emoção muito grande receber uma das maiores autoridades sustentabilistas do mundo. Por meio de seus estudos, Marianne Schmink instrumentalizou a mente de muitos acreanos e a Biblioteca da Floresta só existe por causa de pessoas como ela”, disse o diretor da instituição, Marcos Afonso Pontes.

Leia a seguir a entrevista concedida por Schmink à Biblioteca após sua visita à instituição:

Biblioteca da Floresta: Você lançou no ano passado a edição brasileira do livro “Conflitos Sociais e a Formação da Amazônia”, publicado nos Estados Unidos há mais de 20 anos. Fale um pouco sobre a obra.

Marianne Schmink: O trabalho começou nos anos 70, quando eu estava em Belo Horizonte pesquisando bairros operários para meu doutorado. Eu era ligada à UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais] e eles começaram uma pesquisa na Amazônia sobre imigração para a região e eu fui com a equipe para conhecer o sul do Pará. Era um período difícil, aconteciam muitos conflitos por terra e a gente foi conversar com as pessoas para tentar compreender a questão. Eu, particularmente, fiquei muito interessada em entender essa história. Então a gente foi aprendendo e eu me surpreendi. A região parecia um filme de bangue-bangue. Começamos a voltar mais vezes nos anos seguintes para acompanhar as mudanças, que foram muitas. Primeiro vieram os conflitos pela terra, depois o garimpo, as madeireiras e, por último, as barragens. O cenário estava ficando cada vez mais complicado e a gente tentava registrar e analisar essas mudanças.

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BF: Por isso o trabalho durou 15 anos…

MS: Exatamente. Foram 10 anos de pesquisa, nos anos 70 e 80, e outros cinco para sintetizar o material. A gente fez, na primeira parte do livro, a história da Amazônia, a política de desenvolvimento e o surgimento dos movimentos de resistência. E depois a gente focou em São Félix do Xingu, uma cidade ribeirinha muito pequena, de apenas dois mil habitantes, que tinha uma estrada em construção, a PA-279. Depois da estrada, houve muitas mudanças demográficas e socioeconômicas que transformaram o local em mais uma efervescente cidade da fronteira no sul do Pará.

BF: Como começou sua relação com o Acre?

MS: Depois de fazer esse trabalho no Pará eu me senti um pouco frustrada porque nossos estudos não ocasionaram nenhum impacto na realidade daquele local. Apenas registramos os fatos em um belo livro. E foi nessa época, mais precisamente em 1986, que eu comecei a ouvir a história do movimento dos seringueiros no Acre e decidi conhecer o Estado e Chico Mendes, que liderava o processo.

BF: Como foi seu primeiro contato com o Chico?

MS: Eu procurei a Ufac, na época o reitor era o Moacir Fecury, e ele fez o contato com o Chico. Aí a gente foi à festa de aniversário de um ano do filho dele, o Sandino, nas proximidades do Seringal Cachoeira. Foi todo um esquema para chegar ao local, nesta época a gente já sabia das ameaças de morte. 

BF: E quais foram suas impressões sobre ele?

MS: O Chico encantou todo mundo que o conheceu e eu fui uma delas. Ele era uma pessoa muito poderosa pela naturalidade dele de juntar todo mundo e tentar pensar em uma alternativa para os problemas que eles enfrentavam, tudo com muita paz, bom humor e simplicidade. Eu não tinha visto uma coisa assim no Pará. Lá parecia tão difícil de lidar, e aqui, um estado pequeno, tinha muitas pessoas com propostas alternativas. Pareceu-me um lugar que valia a pena investir mais. Por isso eu comecei a trabalhar com o pessoal daqui.

BF: Que trabalho foi esse?

MS: Primeiro treinamos um grupo de pessoas da Ufac e de outros órgãos que trabalhavam com os seringueiros e os índios e formamos uma metodologia interdisciplinar, de diálogo com o produtor rural. Logo depois, na década de 90, após a morte do Chico, fundamos a ONG Pesacre [Grupo de Pesquisa e Extensão em Sistemas Agroflorestais do Acre] com essas pessoas treinadas. A partir daí eu comecei a não fazer mais pesquisas, e sim apoiar o trabalho do pessoal que tava tentando fazer uma coisa diferente por aqui. Depois conseguimos um financiamento para treinar mais gente. A ideia era apoiar os produtores rurais com um sistema mais diversificado, melhorar a qualidade de vida deles de acordo com a história deles, a visão deles, e não uma coisa imposta, de fora. Essa foi nossa visão. Deste então, eu passei a vir ao Acre quase todo ano para acompanhar esses projetos.

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BF: Você também  é autora de um livro sobre Rio Branco. Comente esse trabalho.

MS: A obra “Rio Branco, cidade da florestania” foi feita em conjunto com Mâncio Lima Cordeiro, que na época era professor de Economia na Ufac. A gente fez um levantamento econômico, social, cultural e histórico da cidade. Enquanto eu apoiava o trabalho na área rural, havia também essa pesquisa na cidade, que depois resultou no livro.

BF: Como você enxerga o Acre no contexto amazônico, levando em consideração a luta dos movimentos sociais no campo na década de 80 e as recentes políticas públicas locais de valorização das florestas?

MS: Para mim tem sido muito gratificante acompanhar toda a transformação do Estado, a começar pelas mudanças na infraestrutura até a forma de tratar os cidadãos, passando pelo conceito de florestania e pelo resgate da história cultural aliado ao grande salto para a modernidade. Hoje eu vejo o quanto foi positivo o impacto na qualidade de vida das pessoas na cidade. Na área rural as coisas também melhoraram muito. Mas existem as contradições, como em qualquer lugar do Brasil. A visão que tínhamos naquela época era a de que a floresta poderia manter as pessoas com diversificação de produção, sem extração da madeira. Isso é muito mais difícil do que se esperava. Então, ainda falta uma solução para a área rural. Depois da criação das Reservas Extrativistas o governo federal acabou com os subsídios da borracha que vinham mantendo a renda do seringueiro. Isso foi um golpe. A borracha já não sustenta mais todo mundo que mora nos seringais. Mesmo assim, no Acre, vimos o Estado fazer de tudo para apoiar alternativas. Tem a fábrica de preservativos Natex, a usina da castanha… O Acre é o Estado que tem as propostas mais consistentes, não são políticas soltas. É uma visão do desenvolvimento em tópicos, aliada a compromissos com a cidadania. Então eu acho que o Acre é único nesse sentido. E um dos resultados é que não se tem um impacto aqui como nós temos em qualquer outro lugar da Amazônia. O Estado é um pequeno laboratório para o mundo. E aqui eu me sinto um pouco mais otimista. Tem coisas boas acontecendo. Não perfeitas, mas propostas que a gente vê que valem a pena investir.

BF: E quais são os principais desafios para a Amazônia nesse sentido?

MS: O que mais me preocupa hoje é ver os seringueiros mais jovens, que não participaram das lutas, não quererem ser seringueiros. É natural as pessoas almejarem outras coisas. O grande desafio agora é equilibrar o respeito à floresta e o resgate da história com o consumismo, a urbanização, a chegada de outros valores… O Jeff Hoelle está estudando, por exemplo, a cultura da pecuária no Acre para seu doutorado. A música, a roupa, isso está muito forte nos jovens. Isso também é uma coisa que vem sendo imposta nos últimos cinco ou sete anos. Então a gente vê as coisas mudando muito com essas novas gerações. Outro ponto é a questão dos assassinatos dos trabalhadores rurais, que continua. Como pode acontecer esse tipo de coisa depois de décadas, em um Brasil hoje emergente no mundo? Isso é muito frustrante.

BF: Quais as suas impressões sobre a Biblioteca da Floresta?

MS: Eu acho que essa biblioteca, de certa forma, retrata a memória do Chico Mendes e a memória da floresta. Gostei muito dessa ideia de apresentar às pessoas um espaço-memória no meio da cidade. É um lugar muito bonito, moderno e bem equipado, onde caminham juntos os dois sentidos: a história e a modernidade. Existe uma tensão permanente entre o passado e o presente, que é essa modernidade, o consumismo e a tendência de todo mundo ser igual e ter as mesmas coisas. Mas aqui é diferente, sinto um equilíbrio.

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