Muito prazer, eu sou Clarice!

Clarice é brasileira do Recife, foi assim que ela mesma se denominou; no entanto, mesmo se declarando uma mulher simples e normal, sabe-se pela sua literatura que é uma estrangeira na terra, inteiramente refugiada. Se em vida estivesse completaria cem anos de existência, faleceu a poucos instantes de completar 57 anos de idade, em 9 de dezembro de 1977. Aliás, o instante, essa inevitável tragédia da vida que é a morte, é o constante mistério na sua magnifica coleção.

Deu ao mundo um verdadeiro tratado humano em sua enigmática loucura literária, por assim dizer. Sua primeira obra, o romance “Perto do coração selvagem”, deu vida a Joana, uma menina esquisita que se ultrapassava mesmo sem o delírio e tenho a impressão de que a alma dessa menina possui existência real em todas as personagens femininas da autora como um apelo à salvação. Clarice é visceral, instintiva, racional e, ao mesmo tempo, divina. Quando a leio tenho a sensação de que me aproximo de mim de um jeito belo sem ser bonita, porque não é a mim naturalmente que vejo no espelho, mas algo que está além, sem antes nem depois. Quando eu leio Clarice me aproximo de Deus.

Do nada, e do silêncio em que “o nada” existe, um dia desses Clarice me pregou uma peça. Em contato com os povos indígenas dei a me perguntar violentamente quem era o invasor e me senti pobremente envergonhada, uma vergonha inocente, no entanto cheia de culpa, um sofrimento sem dor. Nasci na floresta amazônica, onde a natureza é a mais exuberante e rica em biodiversidade do planeta e o que eu sei sobre ela? Os indígenas sabem. Sabem que no núcleo da mata habitam outros seres inimagináveis e através de seus mitos e ritos nos apresentam uma versão sobre Deus e a serpente. Quem não conhece a magia da natureza?  Somos seres desconhecidos num lugar estranho tal como Clarice e o que nos importa (de verdade) não é o mistério insondável da matéria, o “eu” invisível do espaço-tempo?

É certo que dentro dos livros dela tem tantas mentiras. A mentira empobrece a imaginação? A mentira esconde em si a verdade, “mente-se e cai-se na verdade”, eis a verdade metafórica contida em todas as coisas. Toda verdade é uma parte da grande mentira do mundo, no entanto desvendá-la é para raros e loucos e a vida é tão curta. Ler Clarice é tão íntimo e o que escrevo agora também é um dos jeitos que criei para estudá-la, pois dela mesmo não se sabe nada.

Em seu último romance publicado, “Um sopro de vida”, já póstumo, Clarice deu vida à Ângela Pralini. O livro inicia dizendo “quero escrever movimento puro” e segue: “Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranquila. O beijo no rosto morto”. Quando imagino Clarice – sentada na poltrona de seu apartamento carioca à meia noite, com a máquina de escrever sobre as pernas – escrevendo e fumando, mergulhada no vazio da sua criação (“é preciso não ter medo de criar”), vejo-a exatamente como um animal selvagem devorando uma presa e ao mesmo tempo sofisticadamente vestida em trapos. Mas, não. Clarice é uma artista pura.

Há um ser oculto chamado inspiração que caoticamente se move entre o autor e a sua obra. Criar é um processo solitário e penso numa Clarice solitária sem ser infeliz, apenas plena. Nela, inspiração não é loucura, é Deus, e por isso toda a sua obra é rica em sutilezas, porém vermelha e cortante, sangra, é como beber o vinho do cálice do Senhor. Embora sem limites, na metafísica da autora, fica límpido que ninguém conhece a totalidade da criação. O homem não é a sua totalidade, como ousa dizer que se conhece? Clarice é um espiral de conhecer e reconhecer o desconhecido e não ela mesma, é um surpreender-se como uma menina, afinal. Parece que toda mulher será sempre menina; é que no céu não tem adulto, não é mesmo Clarice?

Bethe Oliveira. Economista, especialista sênior em planejamento estratégico e gestão pública. Autora de Loucas e Bruxas, Bruxas e Loucas: contos e poeminhas, pela Editora Três Serpentes.

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