Mentiras sinceras me interessam

Por Milton Chamarelli Filho*

Os poetas, como representantes da arte, sempre são célebres ao produzir seus textos porque geralmente traduzem aquilo que sentimos e, por consequência, nos legam textos memoráveis. Embora Cazuza tenha usado a frase do título para descrever uma das situações dentro de um relacionamento amoroso, podemos pensar em um contexto maior, cultural, em que a mentira se opõe à verdade. Mas nem tudo pode se enquadrar dessa forma, a não ser pela filosofia, que desde Platão concebe A Verdade como a essência das coisas perenes e imutáveis. Assim, as oposições tão clássicas no campo da subjetividade se diluem. Logo, no campo das artes, não há como se definir parâmetros rígidos porque tudo passa pela dimensão do humano.    

Penso, por exemplo, no cinema como a arte da “mentira” ou a arte da ilusão, porque nos faz acreditar em tudo que se passa ali diante de nossos olhos. “Tecnologicamente falando, um filme de 90 minutos, projetado à velocidade-padrão de 24 imagens por segundo, contém exatamente 129.600 imagens diferente” (AUMONT, 2013). Imagens irrealistas são tomadas em ângulos quase impossíveis, colocam-nos entre espaços de tempo (improváveis) e nos situam diante de planos quase inverossímeis. A montagem faz a sua parte ao ligar dois espaços que realisticamente estariam impossibilitados de estar juntos. 

Há todo um universo de cores, sons e figurino que nos leva para dentro da tela. Nessa jornada somos sorvidos pelo ecrã, porque deixamos de viver as nossas vidas para viver aquela que está diante de nós ou em nós. O quanto somos absorvidos dá-nos a dimensão se somos cinéfilos amadores ou críticos, mas isso pouco importa, não é mesmo?   

Acaba o filme, e nos deparamos com a verdade? Dura realidade. É um fato. O cinema já foi chamado de arte das massas; muitos já a viram como a arte do engodo, na qual imergimos para não nos confrontar com os problemas do cotidiano. Mas qual das artes não é senão ilusionista, se pensarmos nas “deformidades” das vênus da pré-história (Willendorf, Lespugue etc), das figuras recortadas por um ângulo da arte egípcia, dos bronzes de Riace e do cubismo de Picasso?     

Dura realidade, mas a realidade dura mais que um filme ou uma série, talvez por isso o cinema tenha dilatado o tempo, levando-nos à duração, fenômeno que distende o tempo para nele possamos prolongar a vida ou prolongar a vida na imagem na qual nós estamos imersos. O tempo se dilata na imagem e nos permite navegar no tempo do imaginário, do sonho. Talvez por esse motivo aproximamos tanto o cinema do sonho, porque ambos nos permitem sonhar. 

Dizemos que o sonho parece um filme, e que “a vida imita a arte”, como disse Oscar Wilde. Em algum momento, queremos ser como um super-herói ou parecer com ele em algum aspecto. Queremos imaginar o outro de nós, e nos reinventarmos na arte do encontro, porque ali somos belos, virtuosos e amáveis. E talvez algum ou muitos de nós se deixem levar porque todos queremos viver essa grande fantasia da arte de sermos amados pelo que acreditamos ser, por um momento. 

Precisamos acreditar na verossimilhança (“o atributo daquilo que parece intuitivamente verdadeiro, isto é, o que é atribuído a uma realidade portadora de uma aparência ou de uma probabilidade de verdade”) porque, como disse Nietzsche, “a arte existe para que a realidade não nos destrua”. Se arte é essa “mentira” ou essa ilusão que julgamos ser verdade, então, “mentiras sinceras me interessam”.

*Milton Chamarelli Filho é professor titular da Universidade Federal do Acre (Ufac) e doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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