Imaginando a distopia

Mentaliza a seguinte situação: seu José, aposentado e dono de um modesto comércio, está doente, com suspeita de dengue. Como de praxe, esperou os dias de manifestação dos sintomas e, após isso, resolveu ir ao hospital para fazer um exame de sangue. Ao receber o hemograma completo, tomou um susto e não foi por causa do resultado do exame. Foi ao ver um boleto que ele teria que pagar pelo serviço – cerca de R$ 44 mil. Pelo impacto do susto, por pouco não precisou de um transplante de coração – que custa, na cotação atual do dólar, mais de R$ 8 milhões. Certamente, ele não tem como pagar nenhuma das despesas e também nem sabe de onde tirar esse dinheiro. E você, teria condições?

O personagem e o enredo acima apenas fazem parte de um problema hipotético, mas o preço dos serviços de saúde é bem nessa média mesmo – do mais básico ao mais complexo. Parece uma realidade paralela e absurda, mas são distopias (“distopia” é o antônimo de “utopia”, que significa realidades desesperadoras) as quais os estadunidenses estão submetidos todos os dias, mesmo cumprindo com as obrigações tributárias e ainda custeando o plano de saúde. Obviamente, a realidade deles é diferente da dos brasileiros, mas situações de dívidas aos hospitais não fogem do comum. Muitos hipotecam seus imóveis, vendem tudo que tem para pagar a conta e ainda assim não conseguem quitá-las.

Apesar da alta carga tributária que os brasileiros pagam – o Brasil é o país que mais paga imposto na América Latina e o 15º no ranking geral dos 193 países signatários da Organização das Nações Unidas –, temos um dos melhores sistemas de saúde públicos do mundo. O Sistema Único de Saúde (SUS), promulgado em 19 de setembro de 1990 através da lei de nº 8.080, visa o atendimento de saúde pública (financiado pelo Governo Federal), universal (para todos) e gratuito à população. Vale destacar que não é de todo “gratuito”, já que todos pagam pelo serviço a partir dos impostos.

Antes da Constituição de 1988, somente os trabalhadores de carteira assinada, que contribuíam para a Previdência, tinham acesso aos serviços de saúde. Do restante, quem não tivesse plano privado, somente recebia os benefícios do Ministério da Saúde quando ocorriam campanhas de vacinação ou o combate a alguma doença específica. Após a criação do SUS, inspirado no sistema de saúde do Reino Unido, a saúde se tornou “um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”, como exposto em seu artigo 2º da Lei Orgânica, buscando reparar danos seculares.

Logicamente, o sistema não é perfeito quando se observa a prática. Faltam remédios, leitos, profissionais, investimentos em hospitais; ainda existem filas enormes para a realização de cirurgias e transplantes e a demora no atendimento ainda é uma realidade constante na vida dos pacientes. Poderíamos passar tempos escrevendo sobre os inúmeros problemas envolvendo corrupção, sobre a falta de investimento, falta de abrangência e valorização aos mais de 200 milhões de brasileiros, mas imagina se ainda tivéssemos que pagar para usar os serviços de saúde – pagar no sentido de tirar do próprio bolso mesmo, de forma direta.

No documentário “Sicko: SOS Saúde (2007)”, de Michael Moore, ele explicita os pormenores do sistema de saúde dos EUA, bem como faz a comparação com outros países. Durante o longa, ele conta que mais de 50 milhões de estadunidenses não possuem plano de saúde justamente por não ter dinheiro para pagar. Além disso, Moore colhe depoimentos de pessoas que se endividaram com as cobranças altíssimas com ambulância, transplante e tratamento de câncer, além do descaso que ainda sofrem envolvendo longas horas de espera, dependendo do plano que possuem. Pelo SUS, todas essas demandas são gratuitas.

Neste ano, o SUS completou três décadas de implementação. Não precisa nem fazer uma análise mais profunda para ver que houveram conquistas, mas também grandes desafios. É necessário que a luta pela melhoria do sistema seja constante e dever de todos os brasileiros. Apesar do plano, em sua integralidade, soar como utópico (algo ideal, mas difícil de concretizar), temos um dos sistemas de saúde mais aclamados mundo afora, justamente pela sua capacidade de abrangência e pela potencialidade do atendimento em massa – e por ser público. Atrás do Brasil, somente o Reino Unido possui grande alcance populacional – cerca de 60 milhões de pessoas. Agora imagina se, em meio a maior pandemia do século XXI, as vítimas da Covid-19 ainda tivessem que gastar para fazerem testes, comprar remédios e utilizar UTIs?

O fato é: zelar pelo SUS é zelar pela qualidade de vida e pela democratização da saúde. Ninguém quer dar passos para trás. Entender que esse sistema só traz benefícios é compreender que todos, do mais pobre ao mais rico, podem ser atendidos sem ter que hipotecar a casa para pagar a conta do hospital. Os grandes desafios, que envolvem a luta contra à precarização e ao sucateamento, devem ser bandeiras as quais todo brasileiro precisa defender, afinal, é melhor sonhar com a utopia de um sistema de saúde à imagem e semelhança da teoria do que imaginar a distopia dele: o pesadelo de ter que pagar fortunas para sobreviver.

Renato Menezes é estudante de jornalismo da Universidade Federal do Acre (Ufac) e estagiário de comunicação na Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp)

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