Se tem um filme que a maioria dos estudantes brasileiros já cansou de ver na escola, este é o “Ilha das Flores (1989)” (se ainda não assistiu, recomendo a procura). Sob direção de Jorge Furtado, o pseudodocumentário de, aproximadamente, 13 minutos, fala sobre o percurso de um tomate e sobre como nosso “telencéfalo altamente desenvolvido” e o “polegar opositor”, que nos diferem dos outros animais, agem nas relações humanas e na distribuição de comida, regidas pelo capitalismo.
Apesar de ser ambientado no bairro Ilha das Flores, em Porto Alegre (RS), o que se apresenta no curta se assemelha, por exemplo, à realidade de mais de 19 milhões de pessoas que passaram fome no Brasil no ano de 2020. Em um ano marcado pela Covid-19, a pandemia da fome, que demarca território nas geladeiras e panelas vazias, não tirou férias um segundo sequer e continuou matando tanto quanto o vírus.
O pior de tudo, ao olhar a sondagem feita pelo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto de pandemia realizado pela Rede Penssan, é ver que a fome não é exatamente um fantasma. Ela geralmente tem cor, escolaridade e gênero, características estas que se destacam a cada pesquisa: mulheres negras chefes de família, com pouco ou nenhum grau de estudo, e seus dependentes.
Se adentrar um pouco mais à pesquisa, verifica-se que cerca de 117 milhões de brasileiros convivem com algum tipo de insegurança alimentar. Ou seja, mais da metade do Brasil não tem certeza se irão realizar todas as refeições básicas no dia seguinte.
Agora imagina ter que conviver com o pesadelo de não ter um grão sequer para ingerir? O Brasil, que havia deixado o Mapa da Fome em 2014, deve voltar a figurar no balanço do ano de 2020, já que são mais de 9% dos brasileiros com subalimentação. E com a alta de itens como o gás de cozinha chegando a R$100, por exemplo, muitos enfrentam a escolha de ter que comprar comida ou cozinhá-la, o que intensificou a procura por alimentos ultraprocessados e sem valor nutricional.
Em contrapartida, a Forbes registrou 66 bilionários brasileiros na lista do clube dos sete dígitos em 2021. As fortunas do seleto grupo tupiniquim, se somadas, chegam a um patrimônio de 220,4 bilhões de dólares. Se convertidas na cotação atual do real, chegam a 1,2 trilhões.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), bastaria cerca de R$ 1,2 bilhão de investimento mensal para que pessoas que vivem com menos de R$ 140 mensais pudessem ao menos ultrapassar a linha da pobreza.
Nesta altura do campeonato, onde milhões de pessoas morrem de fome, vale a reflexão: por que tão poucas pessoas (menos de cem brasileiros, para ser mais exato) concentram tanto dinheiro enquanto milhões sobrevivem de migalhas?
Em cada metro quadrado deste país, existe uma Ilha das Flores, onde a única coisa que prospera é a fome. Pessoas com telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor revirando lixo atrás de comida, às vezes em disputa até com outros animais (como mostra o curta), e pessoas que sequer tiveram a “oportunidade” de catar as sobras e que vivem à míngua, esperando que a fome ceife os ossos que sobressaltam à pele.
É preciso, para além de conscientização sobre o não-desperdício de alimentos, que as autoridades e projetos de combate à fome tracem estratégias e políticas urgentes de redistribuição de renda, agricultura, emprego e educação para que nesta ilha de mais de 210 milhões de brasileiros, a fome e a pobreza sejam as únicas plantas a não florescerem nas panelas das pessoas.
Obs.: Somente na data que esse texto foi escrito, a fome matou mais de 16 mil pessoas no mundo.
Renato Menezes é estudante de Jornalismo da Universidade Federal do Acre (Ufac) e estagiário de comunicação na Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp)