Hepatite, uma doença silenciosa

Entre alguns médicos infectologistas do país, o Acre é apelidado como “o Estado da hepatite”. A hepatite é  mais que uma doença no Acre, é um caso sério de saúde pública, um dos que mais registra números de doentes proporcionalmente ao número de habitantes. Segundo o Ministério da Saúde, de 1999 a 2011 (com dados preliminares para o último ano), foram notificados 343.853 casos de hepatites virais no Brasil. No Acre, segundo a Secretaria Estadual de Saúde (Sesacre), de 2007 a agosto de 2012, foram notificados 16.943 casos, um número mais do que preocupante.

A hepatite é uma doença que não apresenta sintomas, o melhor é que se façam exames preventivos. Testes rápidos podem ser feitos na rede pública de saúde (Foto: Angela Peres/Secom)

A hepatite é uma doença que não apresenta sintomas, o melhor é que se façam exames preventivos. Testes rápidos podem ser feitos na rede pública de saúde (Foto: Angela Peres/Secom)

Com cinco tipos de vírus, cada um com suas características próprias, o processo histórico que levou o Acre aonde está hoje é longo. Não existem motivos concretos que fazem o Estado ter um dos maiores números proporcionalmente de pessoas contaminadas pela hepatite, embora especialistas tentem explicar. O que existe hoje é uma luta gigantesca tanto do governo, que tem que tratar e prevenir a doença na mesma intensidade, quanto dos pacientes, que acima de tudo tentam sobreviver.

Que doença é essa?

As hepatites são variadas porque são causadas por diferentes vírus. Então o que as une para que tenham o mesmo nome? Todos esses vírus atacam o fígado, principalmente. Os vírus são nomeados por letras de A a E, e podem ser divididos em dois grupos: agudos (curto período de evolução) e crônicos (longo período de evolução).

Entre as hepatites agudas está a hepatite A – comum principalmente em crianças e que não têm remédio, é curada com cuidados especiais de alimentação e higiene. A hepatite E tem as mesmas características da A, mas gera complicações em grávidas. Já as crônicas são as hepatites B, C e D. Elas ficam anos atacando o fígado e o infectado não sente nada. Quando começa a sentir é porque a situação já está grave. São elas as responsáveis pela cirrose e o câncer de fígado, doenças complicadas e de tratamento difícil e prolongado. 

Médico infectologista e hepatologista Thor Dantas fala dos diferentes tipos de hepaitem e dos tratamentos (Foto: Angela Peres/Secom)

Médico infectologista e hepatologista Thor Dantas fala dos diferentes tipos de hepaitem e dos tratamentos (Foto: Angela Peres/Secom)

O médico infectologista e hepatologista Thor Dantas explica: “Enquanto as hepatites A e E ocorrem por meio da água e alimentos contaminados, as hepatites B, C e D [Delta] são transmitidas por meio do sangue [transfusões, cortes, agulhas compartilhadas, alicates de unha, sexo sem camisinha, procedimentos hospitalares irregulares e da transmissão na gravidez da mãe para o bebê]”.

Como é uma doença que não apresenta sintomas, o melhor é que se façam exames preventivos. A própria rede pública de saúde oferece o teste rápido em todas as Unidades de Referência da Atenção Primária (Uraps) para hepatite B e C, com resultado em menos de 10 minutos. Karine Pinheiro, da Secretaria de Saúde de Rio Branco, revela: “Infelizmente nós encontramos muitas pessoas contaminadas por meio das ações com teste rápido que fazemos fora das Uraps”.

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O tratamento da hepatite existente hoje é baseado na droga Interferon, com necessidade de aplicação de uma a três vezes por semana, por, pelo menos um ano e meio. É um remédio de difícil aceitação do organismo e com variações dos efeitos colaterais. Para complicar ainda mais, existem pessoas que não têm nenhuma tolerância ao remédio e ele não é recomendado para quem tem transtornos psiquiátricos.

“A hepatite B ainda tem um diferencial por existir um coquetel que o paciente pode tomar pelo resto da vida caso não possa ter acesso ao Interferon. Assim, ele não desenvolverá mais a doença”, reforça Thor Dantas. Já a hepatite C só pode ser tratada com Interferon. Os resultados nem sempre são satisfatórios e a doença, que por um momento parece desaparecer, pode voltar, necessitando de um novo tratamento. Mas a hepatite tem, sim, cura completa. 

A estrutura do Estado

{xtypo_quote_right}Temos consciência de que a hepatite é um problema de saúde pública no Acre. E por isso temos que continuar a investir numa política muito forte de combate.

Suely Melo, secretária de Estado de Saúde{/xtypo_quote_right}Com um grande número de portadores da doença, o Acre também virou uma das maiores referências do país na questão de especialistas, tratamento e estrutura para combate à doença. Atualmente, segundo os números do Serviço de Assistência Especializada (SAE), são cerca de 2.600 pessoas em tratamento de hepatite C, 2.500 em B e 540 em D, número que está sempre mudando. Para os pacientes são dados não só o tratamento e estrutura de exames, mas todo o acompanhamento psicológico, social e médico-multidisciplinar. E justamente para manter essa estrutura foi criado o SAE, dentro do Hospital das Clínicas.

“É uma doença silenciosa. Quando se manifesta é porque o paciente já está em estado grave. A maioria das pessoas descobre ao acaso.”, Edna Gonçalves, gerente-geral do SAE (Foto: Angela Peres/Secom)

“É uma doença silenciosa. Quando se manifesta é porque o paciente já está em estado grave. A maioria das pessoas descobre ao acaso.”, Edna Gonçalves, gerente-geral do SAE (Foto: Angela Peres/Secom)

Quando o cidadão descobre ser portador de hepatite por meio dos exames, é encaminhado imediatamente ao SAE, onde é agendada uma consulta com um dos infectologistas que compõem a equipe e são solicitados os exames de sangue, ultrassom, endoscopia e PCRs (que mede a dosagem de proteína C). Dependendo da carga viral do paciente, o médico solicita a medicação. 

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Segundo Edna Gonçalves, gerente-geral do SAE, existem casos em que o paciente não precisa de tratamento imediato, enquanto em outros é urgente. “É uma doença silenciosa. Quando se manifesta é porque o paciente já está em estado grave. A maioria das pessoas descobre ao acaso.” O próprio Hemoacre é responsável pelas descobertas de muitos doentes por meio dos exames de doação de sangue.

Este ano há um foco maior nas campanhas. Segundo a secretária Suely Melo, 80% dos casos registrados de hepatite B ocorrem em pessoas de 20 a 39 anos. Em 1999 foi realizada a campanha de vacinação em massa contra hepatite B no Acre. Foram disponibilizadas três doses de vacina para a população. Hoje, a criança nasce e já recebe imediatamente a primeira dose. Mas existe um problema que tem se tornado comum: dificilmente a mãe leva a criança para tomar a segunda e terceira doses da vacina. 

O objetivo do governo é disponibilizar a vacina contra a hepatite B para 95% da população estadual de 0 a 29 anos. “Uma vacina custa apenas R$ 14, já o tratamento é uma fortuna”, reforça a secretária. Para que recém-nascidos tomem as três doses, está sendo implantado um Livro-Espelho, que terá  os dados das crianças e aumentará o controle, fazendo com que os profissionais de saúde cobrem diretamente as mães na hora de dar a segunda dose para o filho. 

Tudo é pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Cada tratamento à base de Interferon é bancado pelo governo federal e custa R$ 156 mil por paciente. Durante o tratamento alguns pacientes necessitam de transfusão de sangue e procedimentos cirúrgicos para vedar hemorragias internas. 

O serviço do SAE é extremamente reconhecido tanto pelos pacientes, que dificilmente apresentam queixas, quanto pela comunidade médica nacional e internacional. Conquistou até mesmo o prêmio Inovação em Virologia 2012, da Bristol Myer Squibb, e é considerado o melhor atendimento do Brasil nos casos de doenças infectológicas.

Uma novidade para o tratamento da hepatite é  a parceria do governo do Acre com a Fundação Mehlier, que trabalha com pesquisa molecular e vai montar um laboratório para entender os vírus e a resistência dos medicamentos. A planta do projeto já está aprovada, e até o fim deste ano as obras devem começar. “É preciso investir nos pacientes que já estão doentes e prevenir novos casos na mesma intensidade. É necessário ‘secar esse poço’. Meu primeiro marido morreu de hepatite D. Eu não quero isso pra ninguém”, finaliza Suely Melo.

Quando o fígado não aguenta

Eupídio Rodrigues descobriu a hepatite C em 2001, em abril deste ano ele recebeu parte do fígado do filho (Foto: Angela Peres/Secom)

Eupídio Rodrigues descobriu a hepatite C em 2001, em abril deste ano ele recebeu parte do fígado do filho (Foto: Angela Peres/Secom)

O fígado é um órgão constituído por milhões de células – os hepatócitos -, localizado no lado direito do abdômen, e produz substâncias essenciais para o equilíbrio do organismo. Embora tenha uma capacidade extraordinária de recuperação, certas doenças provocam insuficiência hepática aguda ou crônica grave que podem levar à morte. É a hepatite C a maior agressora de fígados no Brasil, responsável pela cirrose, que o degenera lentamente. Quando o nível de debilidade do paciente se torna muito grande, é necessário um transplante.

{xtypo_quote_right}Ou você para de beber ou morre{/xtypo_quote_right}Quem vê hoje o ex-jogador profissional de futebol de salão Eupídio Rodrigues tranquilo e sorridente não imagina o que ele passou nos últimos anos. O aposentado descobriu a hepatite C em 2001, quando fazia um check-up em Goiânia (GO). “Acho que eu peguei com aquelas aplicações de Glucoenergan [energético famoso e bastante utilizado no passado], que nós jogadores fazíamos, uma atrás da outra”, admite.

Para ele, as coisas seguiram um ritmo desgastante. “Quando descobri a doença estava tranquilo, porque, na verdade, eu não sentia nada. Ainda bebia minha cervejinha normalmente. Depois as coisas ficaram piores. Tive até encefalopatia [síndrome com alterações cerebrais decorrentes da má função hepática].” Foi só em 2005 que a médica infectologista Judith Weirich deu o ultimato: “Ou você para de beber ou morre”.

Em 2006 começou o tratamento com Interferon, mas por apenas um ano. Negativou, mas, voltou seis meses depois, acompanhado então de uma avançada cirrose que fazia com que seu fígado funcionasse com apenas 46% da capacidade, e caindo. Em 2009, a notícia: precisava de um transplante.

No Acre são realizados os transplantes de rim e córnea, mas não os de fígado. Segundo Thor Dantas, o transplante de fígado é extremamente complicado. O Acre se prepara há  anos e ainda não conseguiu realizar um. É difícil e requer cuidados muito especiais. Para suprir a demanda, o Estado conta a parceria do médico Técio Genzini, referência no Brasil nessa área que vem uma vez por mês ao Estado e faz um levantamento dos pacientes que precisam do transplante.

Oitenta e sete acreanos já fizeram transplante de fígado. A fila hoje tem 36 pessoas. O destino desses pacientes, quando estão preparados para o transplante, é o Hospital Bandeirantes, em São Paulo. No Acre já estão sendo feitos o pré-operatório e a preparação para o transplante. Por causa disso, atualmente, apenas 15 dias depois do transplante o paciente já pode voltar para casa. O resultado desses investimentos também gerou uma redução de gastos nos Tratamentos Fora de Domicílio (TFD).

Eupídio foi um desses transplantados. O filho mais novo decidiu doar um rim para ele quando a compatibilidade foi comprovada, e a cirurgia realizou-se este ano, sob os cuidados do médico Gensini e sua equipe. “No dia 16 de abril me ligaram e perguntaram: ‘Tá preparado?’. Eu confirmei, e uma semana depois, dia 23, fiz o transplante em São Paulo. Começou às 10h30 e terminou à meia-noite. Me recuperei rápido, meu menino também, já está levantando peso, viajando com a namorada. E eu estou aqui”, conta, sorridente.

Agora, Eupídio tem de tomar remédio a vida inteira e não faz nenhuma “extravagância”, “Eu larguei até o refrigerante”. Mas as coisas não são tão simples. A hepatite continua a existir na vida do ex-jogador, e o tratamento por enquanto não é possível. Mesmo tranquilo, ele fica triste ao lembrar: “Perdi três amigos para a hepatite C. Eles não aguentaram, e eu estou aqui na luta”. Quando olha para o futuro, Eupídio revela apenas um grande desejo: “Tenho vontade de viajar como eu viajava, mas para passear, não para tratamento”.

Uma luta dupla

Bethânia (nome fictício) encontrou na família o apoio para vencer os momentos difíceis (Foto: Angela Peres/Secom)

Bethânia (nome fictício) encontrou na família o apoio para vencer os momentos difíceis (Foto: Angela Peres/Secom)

Quem vê Bethânia (nome fictício), 36 anos, não imagina o que a vida reservou para aquela mulher de sorriso bonito e bastante vaidosa, com os cabelos bem pintados e penteados. Bethânia casou jovem, aos 19, e, anos depois que se separou, descobriu que o ex-marido estava muito mal de saúde, internado na UTI de um hospital no Mato Grosso. Foi numa tentativa de doação de sangue, em novembro de 2000, que ela descobriu que sua sorologia de HIV havia dado positivo – o vírus da Aids fora passado pelo próprio marido. “Costumo dizer que, na hora em que descobri, eu morri e nasci de novo”, revela.

Depois de anos lutando contra a depressão, conhecendo e aceitando a doença, tomando o coquetel de remédios e tendo que encarar diagnósticos cada vez mais desanimadores sobre sua carga viral, em 2004, em um exame de rotina, dessa vez em São Paulo, uma nova bomba caiu em sua vida: o diagnóstico de hepatite C. Para Bethânia, o mundo que ela lutava para reerguer ruiu de uma vez.

A medicina costuma dizer que os vírus da Aids e da hepatite caminham de mãos dadas. Ambas são doenças infecciosas que podem “casar” perfeitamente, gerando um resultado devastador. No começo Bethânia era mais uma vítima da desinformação. “Não sabia nem que doença era essa. Fiquei assustada. Tive que sentar com o psicólogo para ele me explicar tudo”, recorda.

{xtypo_quote_right}Eu falo para os meus dois sobrinhos, de 16 anos, que usem camisinha, se cuidem, pois eles têm um exemplo dentro de casa{/xtypo_quote_right}Ela fez uso do Interferon e do coquetel anti-Aids ao mesmo tempo. Um período horrível. “Tinha dias que eu pensava que ia morrer.” Com as duas poderosas medicações, Bethânia passou muito tempo internada. “Procurava forças na família, na minha mãe”, afirma. Ela olha para a mãe, que observa a entrevista com a filha da porta de casa e os olhos não resistem: “Essa é a coisa mais preciosa da minha vida”. A mãe segreda em seguida: “Foram tempos tão difíceis que dói só de lembrar. Ela é uma pessoa muito boa, uma alma muito caridosa, quer sempre fazer o bem para as pessoas”.

Hoje Bethânia diz que se sente ótima. Dona de casa, cuida da afilhada – uma linda menina, “como uma filha” -, além de ajudar a mãe. “De vez em quando acontece algum ‘baque’ e eu penso: ‘Papai do céu, olha um pouco para mim’, mas eu me lembro de tudo que passei, que agora eu estou bem, negativada da hepatite há três exames, inclusive com a carga viral de HIV reduzida [os médicos creditam também ao tratamento com Interferon].”

Com a família, Bethânia não poupa palavras. “Eu falo para os meus dois sobrinhos, de 16 anos, que usem camisinha, se cuidem, pois eles têm um exemplo dentro de casa”, diz. Mas a vida não é tão simples. Bethânia tem fortes receios de revelar sua doença até mesmo para alguns amigos, tem dificuldade de arranjar emprego e revela ter mais dificuldade ainda para manter um relacionamento sério. “A maioria dos homens não entende, não conhece, tem preconceito sem saber realmente o que é. Alguns ficaram desesperados quando souberam, já chegaram a me ameaçar.”

Ela recorda ter feito seus últimos exames de carga viral há menos de duas semanas, e a médica disse que os resultados estão “excelentes”. Para Bethânia, não há do que reclamar de todo o tratamento que fez e recebe no SAE, que também é  responsável por todo o tratamento contra a Aids no Acre. “Quando chego ao SAE, consigo de tudo que eu preciso. Eu me sinto acolhida lá. A Edna [gerente do SAE] é praticamente uma mãe pra mim.”

Quando indagada sobre o que gostaria para o futuro, Bethânia solta um sorriso tímido: “Eu queria que Papai do Céu me arranjasse um marido. E muita saúde, claro”.

Passando por quase tudo

{xtypo_quote}O fígado não dói, ele sofre calado” (Heimar Lopes){/xtypo_quote}

Heimar Lopes, de 61 anos, passar horas e horas na frente do notebook navegando pela internet. Ele faz parte de quatro grupos sobre hepatites no Facebook, apenas com portadores e ex-portadores da doença (Foto: Angela Peres/Secom)

Heimar Lopes, de 61 anos, passar horas e horas na frente do notebook navegando pela internet. Ele faz parte de quatro grupos sobre hepatites no Facebook, apenas com portadores e ex-portadores da doença (Foto: Angela Peres/Secom)

Acima do peso, é no mínimo peculiar ver o aposentado Heimar Lopes, de 61 anos, passar horas e horas na frente do notebook navegando pela internet. Ele faz parte de quatro grupos sobre hepatites no Facebook, apenas com portadores e ex-portadores da doença. “A gente interage muito. Isso é importante demais. A gente vira um grupo de autoajuda na internet”, conta ele, que fez questão de montar uma salinha em sua casa só para ficar em contato com as pessoas pela rede social.

Mas quem vê Heimar hoje talvez não faça nenhuma ideia de tudo aquilo que ele passou. Foi diagnosticado em 1993 com hepatite C. “Eu era doador regular de sangue. De três em três meses ia ao Hemoacre doar. Para minha surpresa, um dia, com os exames de doação, disseram-me que eu não podia mais doar. Pensei que era HIV na hora, mas era a hepatite”, lembra.

“Foi um choque. Eu recebi a notícia e desabei. Não sabia de nada, mas saí angustiado, desanimado, liquidado. Eu me achei condenado. E a discriminação era enorme na época.” O médico infectologista que o atendeu na época era um homem chamado Tião Viana, hoje governador do Estado. “Foi ele quem me explicou tudo, me ensinou que doença é essa. Foi ele que me acalmou. Ele me arranjou um livro, explicou e disse: ‘Essa é uma doença com a qual você vai ter que aprender a conviver’.”

Mas o que Heimar iria passar nunca poderia ter sido imaginado. Começou a tomar Interferon em 1994 e o tratamento foi como uma bomba. Certa vez, tomou uma dose, chegou em casa e não sabia se iria conseguir tomar outra de tão mal que passara. Na época, o Interferon era uma droga nova e havia médicos que diziam que a hepatite não tinha cura. Foi ele, outros doentes e o próprio Tião Viana que resolveram então montar a Associação dos Portadores de Hepatite do Acre (Aphac), para lutar pelo direito de usar e ter o Interferon.

“Mas o Interferon não foi o suficiente. Eu tive tudo que a hepatite é capaz de dar – problemas no esôfago, cirrose, hemorragias, só não precisei de um fígado novo”, afirma. Foram 14 anos de tratamento contra a doença. Talvez não haja ninguém com relato tão longo. Heimar teve que fazer até uma cirurgia chamada Derivação Portal, e por causa disso seu sangue corre de maneira “diferente” das outras pessoas.

Viajou diversas vezes. Vomitava sangue. Foi parar em inúmeras ocasiões na UTI. Uma vez achou que iria morrer dentro de um ônibus, em Goiânia, a caminho do hospital, com o desesperador sentimento de estar longe de casa. Chegando, fez o procedimento cirúrgico de Ligadura Elástica e precisou trocar oito veias. Ninguém no Acre achava mais que ele conseguiria voltar para casa vivo. Mas foi então que as coisas começaram a melhorar.

Há dois anos parou o tratamento. “Quando me descobri curado, foi a melhor coisa da minha vida. O meu caso só  um milagre explica. Faz um ano que meus exames dizem que eu estou negativado, mas foi o último que realmente me deu certeza.” Sorridente, sempre acompanhado da mulher e do único neto, ele brinca consigo mesmo: “Eu só estou obeso agora, isso é meu problema para quem já foi completamente ‘seco’ por causa do tratamento”.

Grupos no Facebook: Conhecendo a Hepatite, Transplante de Fígado, Cantinho de Desabafo.

Uma associação de amigos

{xtypo_quote}Ela, sim, é uma doença que não tem preconceitos – atinge ricos e pobres, gente bonita e feia” (Heitor Júnior, presidente da Aphac){/xtypo_quote}

“Ela, sim, é uma doença que não tem preconceitos - atinge ricos e pobres, gente bonita e feia” (Heitor Júnior, presidente da Aphac) (Foto: Angela Peres/Secom)

“Ela, sim, é uma doença que não tem preconceitos – atinge ricos e pobres, gente bonita e feia” (Heitor Júnior, presidente da Aphac) (Foto: Angela Peres/Secom)

A Associação dos Portadores de Hepatite do Acre (Aphac) tem 19 anos de existência e foi a primeira do tipo no Brasil. É uma das ONGs mais estruturadas e respeitadas do país e tem um estrito relacionamento com os órgãos de saúde do Estado e com o Ministério da Saúde. Para se ter uma ideia do reconhecimento, foi o bilionário Bill Gates quem comprou a sede da Aphac, após um projeto enviado para sua fundação beneficente. Segundo seu atual presidente, Heitor Júnior, a associação tem uma visão: prevenção e controle das hepatites no Acre. Hoje, são cerca de sete mil associados, dos 22 municípios do Estado, com núcleo em sete cidades.

Heitor explica que a Aphac também tem o papel de provocar o governo para que haja as ações integradas, com o diagnóstico de outras doenças como sífilis e HIV. Sentado em seu computador durante a conversa, Heitor escreve um extenso e-mail direto para o governador Tião Viana, um dos fundadores da associação, quando ainda atendia como infectologista, e deixa claro como dialoga com a Secretaria de Estado de Saúde, que tem um departamento exclusivo para cuidar da hepatite. Heitor é incisivo: “O maior problema de saúde pública do Acre se chama hepatite. Temos de 10 a 12 óbitos por mês por causa dessa doença, só aqui na associação”.

Como presidente, Heitor luta, com os órgãos estaduais, para que algumas providências sejam tomadas, entre elas a aplicação dos testes para anti-HBS, que identifica quem já está imune contra a hepatite B, e médicos para o interior do Acre. Somente Rio Branco, Cruzeiro do Sul e Sena Madureira possuem atendimento de médicos infectologistas.

A associação também luta para se manter de pé. São R$ 10 por mês de cada associado e foi iniciada uma campanha para que as pessoas doem R$ 3 mensalmente para a Aphac por meio da conta da energia elétrica. Além de uma forte relação de amizade e companheirismo que existe entre os associados, essencial numa doença famosa por causar depressão durante o tratamento, a associação oferece aos seus sócios uma maior viabilidade de exames e agilização de consultas e tratamento quando necessário, por meio, principalmente, de laços estreitos com o SAE.

A Aphac oferece ainda serviços de coleta, vacinação e testes rápidos em parceria com a Secretaria de Saúde de Rio Branco, distribuição de mais de 300 cestas básicas semanalmente para associados em parceria com a Secretaria de Extensão Florestal e Produção Familiar (Seaprof) e ajuda jurídica com direitos trabalhistas e INSS. “Fazemos até a ‘segurança’ dos casais aqui. Às vezes eu sou até conselheiro matrimonial. Em média, 30% dos casais se divorciam depois que descobrem a doença no parceiro ou parceira. Muitas vezes a mulher, ou o homem, não se sente capaz de suportar a agressividade e depressão do marido ou da esposa durante o tratamento”, conta Heitor.

A Aphac oferece ainda serviços de coleta, vacinação e testes rápidos em parceria com a Secretaria de Saúde de Rio Branco, distribuição de mais de 300 cestas básicas semanalmente para associados em parceria com a Secretaria de Extensão Florestal e Produção Familiar (Seaprof) e ajuda jurídica com direitos trabalhistas e INSS (Foto: Angela Peres/Secom)

A Aphac oferece ainda serviços de coleta, vacinação e testes rápidos em parceria com a Secretaria de Saúde de Rio Branco, distribuição de mais de 300 cestas básicas semanalmente para associados em parceria com a Secretaria de Extensão Florestal e Produção Familiar (Seaprof) e ajuda jurídica com direitos trabalhistas e INSS (Foto: Angela Peres/Secom)

Para o presidente da Aphac, o preconceito diminuiu muito, mas por causa da banalização da doença, não de sua aceitação. “Antes as pessoas tinham vergonha de dizer que tinham hepatite; hoje, nem tanto.”

O próprio Heitor teve hepatite C, que ele acredita ter contraído através de uma lâmina de barbear. Fez 24 meses de tratamento e entrou em depressão, perdeu o ânimo, sentiu-se péssimo. “Eu sei a dor dos associados, por isso comprei essa luta”, afirma. Hoje Heitor sonha em montar uma estrutura na associação que passe a realizar endoscopia e ultrassom, dando celeridade ao diagnóstico dos pacientes.

Uma nova esperança

Teste rápido para HIV, hepatite B e C, são realizados pela rede pública de saúde. Resultado sai em poucos minutos (Foto: Angela Peres/Secom)

Teste rápido para HIV, hepatite B e C, são realizados pela rede pública de saúde. Resultado sai em poucos minutos (Foto: Angela Peres/Secom)

A hepatite tem a transmissão mais fácil do que o próprio HIV. É um vírus forte e resistente – pode passar até  sete dias vivo fora de um hospedeiro. Em especial, a hepatite C foi descoberta apenas em 1989 e ninguém se preocupava muito com a transmissão dela. O próprio serviço de saúde pública no Brasil foi transmissor de muita hepatite com agulhas e seringas de vidro reutilizáveis.

{xtypo_quote_right}O Acre está ficando cada vez mais rico como área de pesquisa e entendimento das hepatites virais{/xtypo_quote_right}A hepatite D, segundo a gerente do SAE, também apresenta particularidades. “Essa é uma doença da Região Norte. No Sul e Sudeste, por exemplo, não há hepatite D, que na verdade só  pode ser adquirida se a pessoa já tiver a B. Em compensação, o Acre está ficando cada vez mais rico como área de pesquisa e entendimento das hepatites virais”, declara. A secretária de Estado de Saúde, Suely Melo, conta que, no campo do transplante de fígado, recentemente uma capacitação deixou 110 pessoas aptas para todo o processo de transplante, desde a captação até o transplante em si. O primeiro transplante de fígado no Acre deve acontecer até o fim deste ano.

Já o tratamento continua sendo à base de Interferon. Porém, uma nova fase para o tratamento da hepatite começa com o lançamento de duas novas drogas surgidas no fim de 2011: o Boceprevir e o Telaprevir. Mas as coisas não ficaram mais simples. Como no Acre a situação é grave, aconteceram muitos pedidos do Boceprevir, que foi vendido como a solução para quem não conseguira negativar a hepatite apenas com o Interferon. É um produto novo e de alto custo – só o tratamento de Boceprevir custa R$ 60 mil por paciente e deve ser tomado junto com o Interferon.

Alguns pacientes entraram na Justiça para pedir o remédio e foram atendidos. Segundo Edna Gonçalves, do SAE, muitos não resistiram ao tratamento até o fim, foram para a UTI e tiveram que largar. Há o interesse do governo federal em disponibilizá-lo, mas aos poucos. “Se o médico faz uma propaganda positiva do remédio, é claro que um paciente grave vai desejá-lo, porém, sem ter realmente ideia do seu verdadeiro poder e do quanto ele também pode ser perigoso”, conta Suely Melo.

Especialistas reforçam a necessidade de fazer exames preventivos (Foto: Angela Peres/Secom)

Especialistas reforçam a necessidade de fazer exames preventivos (Foto: Angela Peres/Secom)

 

Para o médico Thor Dantas, a previsão é  de que a partir de agora um remédio novo será lançado por ano contra hepatites virais, e que daqui a cinco ou sete anos já deverá  existir um tratamento que não precise do Interferon. “E o que fazemos nos laboratórios hoje? Indicamos que os pacientes que possuem hepatite C leve e que não precisam de tratamento imediato aguardem os novos remédios, mas o paciente com hepatite C, já em estado debilitado, deve começar o tratamento imediatamente e procurar maneiras de suportar os efeitos colaterais”, revela o especialista.

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