Mais de 500 haitianos chegaram ao Acre nos últimos 10 dias. Brasileia abriga mais de 1.200 imigrantes
A praça Hugo Poli, em Brasileia, fronteira acreana com a Bolívia, está tomada por mais de 1200 refugiados hatianos. Eles deixaram para trás seu país, lugar devastado por uma guerra civil e um terremoto, e chegam ao Brasil carregando, apesar do sofrimento, grandes esperanças.
Para esses homens, mulheres e crianças, o desafio da sobrevivência passa pela espera das refeições diárias, servidas pelo governo estadual. A incerteza do amanhã e a superação da dor em lembrar a família que ficou para trás são imagens que se repetem no olhar silencioso dos haitianos. E que tem alterado a rotina, até então interiorana, de Brasileia, cidade de 21 mil habitantes.
De janeiro de 2011, quando o primeiro grupo de haitianos cruzou a fronteira acreana, até hoje, 2.250 refugiados chegaram ao Acre. Mil já deixaram o estado. Com o documento em mãos, eles procuram outros destinos. Manaus, São Paulo e Porto Velho são os mais comuns. Santa Catarina e Brasília também estão entre as escolhas.
O último registro da Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos, (Sejudh) órgão encarregado de acompanhar a questão, apontava 1.237 haitianos. Cerca de 300 já estão com a documentação em mãos e esperam que o governo ofereça transporte de Brasileia, município onde estão, até a capital acreana, distante cerca de 220 quilômetros, onde eles tiram a carteira de trabalho.
A informação de que o governo impediria a entrada de imigrantes após o dia 31 de janeiro fez com que os haitianos que estavam planejando vir para o Acre se apressassem. O resultado foi a chegada em massa de cerca de 500 refugiados na última semana do ano.
Uma reunião do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), presidido pelo Ministério da Justiça, deu início às informações. “O órgão estuda medidas para reprimir a imigração ilegal através da fronteira acreana, mas ainda não tem nenhuma posição em relação aos haitianos. Constitucionalmente, o Brasil é um país de fronteiras abertas: não fecha as portas ou nega abrigo para nenhuma nação. Por isso eles chegam de forma ilegal, mas não são expulsos e conseguem a documentação para trabalhar no Brasil”, explica Henrique Corinto, secretário adjunto de Direitos Humanos no Acre, que acompanha a questão desde o início.
Corinto afirma que o Acre não tem condições de gerenciar este problema sozinho. O estado gasta cerca de uma tonelada de alimentos por dia para alimentar a população de haitianos refugiados. Todos os dias são servidos dois pães e café com leite no início da manhã, almoço e janta para mais de 1.200 pessoas. Sensibilizado com a situação, o Governo Federal, a pedido do governador Tião Viana, doou 14 toneladas de alimentos.
“A ajuda que o governo federal tem dado é insuficiente. Não temos mais condição de arcar com esta despesa. Este é um caso de Defesa Civil Nacional. O Acre já gastou cerca de R$ 1,2 milhão com esse problema. Não temos mais recursos”, alertou Corinto.
Damião, o embaixador dos haitianos
Damião Borges é um funcionário do governo que decidiu trabalhar em tempo integral por uma causa cuja procedência ou competência já não tem importância para ele. A vida humana, o amor ao próximo e a necessidade sofrida por pessoas que estão fugindo de uma situação caótica supera qualquer formalidade escrita em lei que diz que um servidor público deve trabalhar apenas oito horas por dia. Finais de semana e feriados também não fazem mais parte do calendário dele.
Os dias têm sido chuvosos na fronteira acreana. De bermuda e chinelo, com um guarda-chuva sobre a cabeça – para se proteger da sinusite, ele explica –, Damião carrega sobre os ombros não só os problemas relacionados aos haitianos em Brasileia. Mas a boa vontade em resolvê-los. Seja a comida que não sai bem feita, seja a falta de água ou um cartão de telefone para um pai falar com a família na hora da morte de um filho. Muitas vezes o recurso sai do próprio bolso.
“Eu trabalhava com esporte. Fui destacado para cuidar dos haitianos por vinte dias e estou até hoje. Já não tenho hora para trabalhar, porque eles batem na minha porta mesmo sendo tarde da noite. Mas como eu vou ligar pro horário de trabalho que diz a lei diante de uma situação como esta? É a vida humana, eu não posso balançar os ombros e fingir que não está acontecendo nada”, diz.
A saga pela documentação
Os haitianos entram no Brasil de forma ilegal, pois saem de seu país sem o visto necessário no passaporte. Segundo o Conare, foram concedidos 1.600 vistos humanitários até agora. Como os imigrantes não são considerados refugiados, pois não são perseguidos por razões políticas, religiosas ou de cor, é possível a concessão deste documento.
Chegando ao Acre o primeiro passo é se apresentar à Delegacia de Polícia Federal para dar início à retirada da documentação, que leva em média 45 dias para ficar pronta. Em alguns casos pode demorar ainda mais tempo. “Agora o Governo do Estado, a prefeitura de Brasileia e a PF fecharam uma parceria para ajudar no preenchimento dos formulários e no encaminhamento do processo para agilizar o procedimento” explicou Corinto.
Com a documentação completa em mãos, o governo do estado deixa de ter qualquer vínculo com eles. A maioria vai embora. Uma média de 150 haitianos ficou na capital e estão empregados.
A rota dos haitianos
Do Haiti para o Acre é uma longa viagem. Os haitianos deixam Porto Príncipe, capital do país, passam pela República Dominicana, Panamá, Equador e desembarcam em Lima, no Peru. De lá, o roteiro feito até então de avião, segue por terra até a cidade de Puerto Maldonado, distante cerca de três horas de carro do município acreano de Brasileia, onde eles se refugiam. A parte mais difícil do trajeto, porém, é a travessia para o Brasil: há diversos relatos de extorsão, espancamento e abusos.
Pela lei brasileira, os imigrantes estrangeiros que chegam devem se apresentar na primeira delegacia de Polícia Federal do território que, neste caso, fica em Epitaciolândia, cidade vizinha à Brasileia, também fronteira com a Bolívia. Mas, para deixar o Peru e entrar no Brasil é preciso passar por Assis Brasil, onde a entrada não estava autorizada por falta do visto no passaporte.
Hoje a PF tem feito vista grossa, após as denúncias dos abusos, violência e roubo de dinheiro e até de roupas por parte da polícia boliviana. “Sem poder entrar por Assis Brasil, eles recorriam novamente aos coiotes para atravessar pela Bolívia e chegar até a fronteira em Brasileia. Segundo as denúncias, era neste trajeto, numa vila chamada Soberania, que os abusos aconteciam”, explicou Damião.
Pai chora a morte do caçula na praça
Em pé, em meio à praça Hugo Poli, Saint-Louris Fresnel chora a morte do filho caçula, de apenas três anos, no Haiti. Desesperado, ele procura Damião para pedir ajuda. Em meio ao tormento, quer voltar ao país para enterrar o filho, mas não tem nenhum real no bolso. “Eu falei com ele às duas da tarde e as quatro eu soube que ele havia morrido. Estava bem, não estava enfermo. Não sabemos como foi”, conta. O funcionário encarregado de cuidar deles tira do bolso o dinheiro para comprar dois cartões de telefone. É a única coisa que pode ser feita.
Ao vir para o Brasil, Fresnel passou cinco anos guardando dinheiro. Trabalhando como pedreiro, ele juntou R$ 2,5 mil dólares. “Eu queria imigrar para qualquer país que tivesse oportunidade de melhora, então comecei a guardar dinheiro e esperar o primeiro movimento de imigração para me juntar a ele. Me disseram que aqui tinha trabalho, no Haiti não há nada, só desolação. Eu arrisquei tudo e vim para cá. Só quero um trabalho para mandar dinheiro para a minha família”, disse.
Para chegar ao Brasil são necessários entre $ 2,5 e $ 3 mil dólares. No Haiti a moeda é o gum. Um dólar equivale a 40guns. Um encarregado de obras, por exemplo, ganha cerca de mil guns por dia. “Mas não há trabalho para ninguém. O aluguel da casa que minha mulher mora com nossos filhos é 2,5 mil guns. Está atrasado há dois meses. Preciso mandar dinheiro urgentemente”, se desespera.
Casal mora num banheiro com criança de quatro meses
Angelina e Wesley Saint-Fleur moravam numa casa grande, com quatro quartos e cinco outros cômodos que eles chamam de galeria (salas, cozinha). Hoje eles vivem em metade de um banheiro, na pousada alugada pelo governo, com um filho de quatro meses. Comercializavam tecidos e motos importadas e quando a situação no país ficou complicada ele passou a trabalhar na construção civil, unindo blocos de concretos para levantar paredes. No terremoto, perderam a filha de sete anos e a casa. Deixaram o país há nove meses, deixando também os filhos de 2, 4 e 6 anos com os avós paternos.
A primeira parada foi no Equador, onde conseguiram trabalhar e mandavam parte do que ganhavam para a família. As dificuldades foram aumentando e o casal se viu obrigado a vir para o Brasil. Há três meses os Saint-Fleur não conseguem enviar nenhum tipo de ajuda aos familiares. Chegaram ao Acre sem roupa e humilhados. Policiais bolivianos arrancaram $ 320 dólares escondidos na calcinha de Angelina.
“Dói muito o meu coração saber que eles não têm o que comer e que estão numa situação cada vez pior. Meus pais são velhos, não podem trabalhar e os meus filhos já nem trocam de roupa, não têm outra para vestir. Na virada de ano também se faz festa em meu país e eu falei com minha família. Eles passaram muito mal. E isso acaba comigo, preciso fazer algo por eles. Tudo o que quero é trabalhar e ajudá-los”, desabafou Wesley.
“A história do meu país é muito triste”
O terremoto de janeiro de 2010 no Haiti não é a principal causa da fuga de haitianos do país. “Isso foi só a gota d’água que faltava para virar o vaso, porque nossa população vem sofrendo há muitos anos. Quando a ditadura acabou, na década de 1980, nós pensamos que a situação iria melhorar, mas não mudou”, conta Esdras Hector, um jovem de 27 anos que conseguiu cursar até o terceiro ano de Direito e trabalhava como ajudante de pedreiro no Haiti.
Esdras é poliglota. Além do crioulo, francês e inglês, línguas usadas em seu país, fala também espanhol, alemão e russo. Com um mês no Acre ele começou a falar português e hoje estuda, sozinho, o idioma italiano. “Deus me deu uma facilidade de aprender outras línguas e eu tenho um método próprio”, explicou. Desempregado, ele tem esperança de trabalhar ensinando línguas, principalmente o inglês, para grupos, escolas ou particulares.
“Eu tenho explicado muito sobre a situação do meu país. É uma história muito triste e que me deu tristeza quando eu comecei a pesquisar sobre ela. No Haiti, 65% da população é jovem. Antes do terremoto havia de 20 a 25% de desempregados e metade da população vive com menos de um dólar por dia. Cerca de 90% do ensino é privado. Para melhorar de vida esse é o único caminho. Como, então, as pessoas vão estudar, se são miseráveis e a escola é paga?”, desabafa o jovem.
Moradores reclamam perda da praça principal do município
Entre os moradores de Brasileia, as opiniões se dividem. Uns acham que o governo deve fechar as portas, mesmo que os refugiados não tenham condição nenhuma de sobrevivência. Outros entendem que a vida humana está acima de qualquer diferença, seja ela de cor ou de geografia.
Hauascar Miguel é aposentado. Ele resume o pensamento que prevalece na cidade: “Não escuto as pessoas falarem mal ou negarem ajuda. A única questão é que a nossa diversão é brincar na praça com nossos netos, encontrar os vizinhos no final de tarde e não temos mais este espaço. Em um município do interior a praça é o refúgio, nossa opção de lazer”, disse.
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