Flores murchas na primavera

Todos os dias eu escrevo qualquer coisa: uma palavra, uma frase ou algumas bobagens que só se dizem em instantes de distração, quando a alma transpira sutilezas do cotidiano, quase como uma tristeza depois do riso.

Carrego sempre um caderninho porque a inspiração é um salto do imprevisível. Hoje eu queria escrever sobre uma flor, mas não consegui sair da intenção. Pesquisei rapidamente sobre botânica e biologia das plantas. Como pensar na simplicidade da flor se ela possui dentro de si a semente?

Observei sem ânimo uma Dama da Noite murcha. Tenho uma insistência dentro de mim todas as vezes que vejo flor murcha presa no pé com vontade de cair. Seria maldade contida dos galhos a empobrecer a flor depois de morta? O que existe depois do mundo? Nem as flores se acostumam com a brevidade da vida presa no corpo frio e pálido e cego e mudo e surdo e sem contaminação, puro, puríssimo, sem nada que se possa expelir. Tudo funciona em perfeita sintonia com a máquina e as pancadas do coração: tum-tum…tum-tum-tum. Cada compasso é a existência das coisas em mutação e, mais do criar, o tempo se encarrega de destruir e não há nada que se possa fazer com as flores murchas, apenas esperar pelos galhos.

Guardei desse olhar distraído as palavras “solidão” de uma flor ou a flor “decaída”. Fechei o caderno e fui para o trabalho pensando nas coisas notáveis pelo caminho, nada vi a não ser o cachorro marrom da última esquina antes do estacionamento.

Não raro, escrevia sobre coisas incomuns, criei até um diário para esse tipo de inserventia. Mas, o que é incomum mesmo é a coisa comum desconhecida ou pelo menos pouco explorada pela visão insistente da superfície. As coisas incomuns não se guardam, estão por aí à procura de olhares, dos curiosos momentos em que o temor que conhecemos é não conhecer. Pensei com a força de um mamífero nas fotografias rasteiras do D’Acre, a sua sombra arguta e calma quase em harmonia com a perfeição do último raio de sol na Gameleira, penumbroso, dando aos lugares banais um ar de imaginação tão corriqueira que ninguém se apercebe, enquanto o invisível da matéria cria uma espécie de onipresença nos nossos olhos cheios de espanto. Morrer deve ser assim, vestir um traje alheio que nunca fora visto antes.

Tudo que me vinha à mente eram monstruosas aberrações ao lembrar do cachorro marrom da esquina vigiando o seu dono deitado na calçada poeirenta, coberto com um papelão, apenas os pés sujos de fora me diziam que ali existia um humano como eu, ao passo que me perguntava, há alguém aí? Havia alguma coisa inteiramente morta no âmago da vida que meus olhos impávidos não conseguiam ver.

Onde há flor nisso tudo? Procurava a palavra apropriada para resumir o meu dia. Palavra é substância sem corpo e nenhuma centelha na imaginação explodia em meu cérebro cansado, apenas um fluxo desordenado de quem viveu um dia confuso, naturalmente. Para ver uma flor é melhor sentir, não, não, é melhor imitá-la por dentro com seus elementos típicos da tragédia, deixando-se operar pelas circunstâncias de um impulso instintivo: a solidão de um botão prestes a nascer, se ultrapassando de repente e nem bem virou flor já se é outra coisa.

Eu não tenho o hábito de me dar por inteira, não largo o fiozinho que me segura no ar. O frio na barriga me apavora só de pensar em brincar de cair, sem carne, feito um molambo, enquanto a mente é tomada de assombro e contemplação infinita, como se fosse uma noite úmida sem luz, essa atmosfera em que se contam histórias de tremer antes de dormir para amedrontar o sono. Não me dou por inteira porque descobri que tenho medo de deus e dessa morte que se aproxima toda vez que a inteireza tem chama de liberdade, vida de verdade, aquele silêncio que comunica o “eu sou” sem ser nada de mim, pelo menos eu não reconheço. Todas as vezes me assusto com esse desconhecido mundo que não existe, mas que faz o tempo rodar, rodar, rodar. A vida é essa roda intermitente. Breve? Não sei, afinal. Vida sem morte não existe e do que eu tenho medo mesmo é de morrer. A morte é um esquecimento involuntário e me desconcerto com esse entendimento de que nunca mais lembrarei de mim. Eu não quero essa liberdade de não ser eu quando se é por inteira, mas só se é alguma coisa quando se é livre, livre do medo, tal como um deus. Livre da morte só se é morrendo e desconfio que para não morrer terei de ser eu por inteira, inteiramente eu, o que me faz ter medo de mim, medo da vida que me deram e da morte que me pertence.

Bethe Oliveira é economista e autora do livro Loucas e Bruxas, Bruxas e Loucas: contos e poeminhas, pela editora Três Serpentes.

 

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