Por Milton Chamarelli Filho*
“Sou imortal”, acho que é assim que nossa mente pensa, ao menos até os 20 anos ou mais. A representação que criamos de nós mesmos, sem saber que o fazemos, é tão perfeita quanto o quadro Las Niñas, de Velásquez. Nesse jogo de espelhos espelhados o objeto se modifica rápida e furtivamente enquanto a imagem da perfeição se projeta ao infinito.
Aos poucos, os espelhos, com o tempo e em um movimento endógeno, vão se quebrando, e começamos a perceber que o objeto, nosso corpo, mudou, transformou-se, porque aquela distante imagem refletida vai se transformando cada vez mais na “nossa” imagem “nua e crua” (será?), embora isso, de fato, nunca aconteça porque a percepção que temos do mundo e de nós mesmos é sempre mediada por signos, representações.
Eis o que é, agora vejo-o já dessa idade e de outra quando eu era mais jovem. Não me incomoda o envelhecer, embora eu sinta falta de tantos atributos de outrora, incomoda-me não saber em que ponto ou quando esse móbile pode parar. Há uma dilaceração no piscar de olhos porque ele movimenta o passado e o futuro, e nem o achamos tão singular, que pode ser de vida ou de morte.
Continuo no movimento no sopro do vento da criação, como uma pequena caravela de Deus, e me dou conta da minha idade, como Zuenir Ventura, em Um idoso na fila do Detran. Sim, estou na fila da farmácia e um atendente solicita a um “senhor”: qual a sua idade? Responde o senhor: 54 anos. Penso: ele parece mais velho do que eu ou sou eu que não consigo me ver como velho, com pelos brancos e rugas “naturais” da idade. Será que eu construí uma representação tão ideal que ainda me encontro preso nas instâncias joviais de Narciso?
Vivi a minha juventude num tempo em que ser jovem era moda, e o estilo daqueles que lá estiverem é o que forma o meu gosto: Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Plebe Rude, Sting, Phill Colins etc. Nunca sei se me sinto um avant-garde da minha geração quando ouço DJ Alok ou um “coroa” extemporâneo, daqueles que usam roupas de garotões com 30 anos a menos do que eu. É quase um paradoxo, talvez imposto mesmo pelos modismos.
“Envelhecer”, prefiro essa expressão por retratar um processo, e não me venham com os eufemismos de “terceira” ou “melhor idade” – que sempre estão ali e acolá para substituir “velho”. Não tenho nada contra o Botox ou fato de querermos nos sentir jovens. Fomos criados como o novo sendo sempre o revigorante: “Eis que faço novas todas as coisas”, disse Deus a João em Apocalipse 21: 5. Porque há de ser assim, no mundo dos homens e no reino animal, porque o novo é símbolo de vigor, de virilidade e de beleza.
Você voltaria no tempo? Eu voltaria no tempo, mas somente para resgatar aqueles que amo daquela (im)possível fatalidade. Há tantas metáforas que me vêm à mente que pego numa espécie de déjà-vu. Quantas dessas ilusões eu tive quando saí de casa aos 25 anos porque meu inconsciente precisava me sustentar, talvez, com a memória da qual eu precisava em meio a um ambiente ignoto e inóspito. Essa memória você nunca vai ter, e o que fiz durante todo esse tempo, nas bordas brancas do meu currículo você nunca vai saber. Simplesmente porque você nasceu ontem, mas você nasceu “velho”, com toda pejoratividade que esse nome pode ter, como Benjamin Button.
Quanto mais velho eu for, mais novo você será, e você terá que me alcançar como a reta à curva numa assíntota. Eu sempre estarei à frente de você, no tempo e em maturidade, sobretudo nas bordas escritas e brancas do meu currículo. Os jovens… Ah… os jovens… acham que podem enganar os mais velhos… De fato, na prática, podem, mas nunca nos discursos ou pensamentos… Já conheço o desenho desse pensamento porque eu já estive aí e pensei eu mesmo como você, pela sagacidade da minha juventude, que podia ser mais rápido, como a lebre, na fábula de Esopo.
O meu casco não compreende meu corpo, mas tudo aquilo que vivi. Minhas rugas são estradas que só eu as percorri. O tempo é ingrato? Não. O tempo é uma duração. Essa dimensão pode ser dilatada ou existir no tempo do “é”. E eu penso que foi isso que Velásquez fez em Las Niñas. Congelou o momento de todos os olhares diante de um espelho que ele mesmo criou e deixou para nós uma eternidade fugaz, porque você olha para o quadro e a cena está lá. Você volta a olhar e a cena de novo está lá, olhando para nós, antes mesmo de termos nascido, e tudo está num piscar de olhos que faz você ver de novo, nessa tentativa de buscar a eternidade? Fugaz…
Por isso, poderíamos estar no quadro do pintor espanhol, e não é a isso que ele nos convida? Viver entre-espelhos, modelo “eterno” da nossa juventude narcísica, mais até do que o mito de Narciso?
Para! Estou na gôndola do supermercado e ela me oferece para ler as informações nutricionais do produto com uma lente de aumento. “Enxergo menos, não, enxergo mais”, disse algum escritor de quem não me recordo o nome. As peças do lego começam a se juntar, a se encaixar e eu consigo ver além, as junções possíveis, as partes que faltavam… Começo a “compreender”, mas sou surpreendido pela etimologia dessa palavra: “prender”, “agarrar com as mãos”, “apoderar-se”, porque, se o tempo me faz compreender, ao mesmo tempo, o faz em vão porque nada pode resistir tanto entre-mãos, nas mãos: a areia na mão da criança, o vidro que se faz areia e o espelho que se faz do vidro, que se quebra… e nos tornamos fragmentos de tudo que também vai envelhecendo, envelhecendo, envelhecendo.
*Milton Chamarelli Filho é professor titular da Universidade Federal do Acre (Ufac) e doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo