Marlene do Nascimento, 42 anos, tinha tudo para ser uma mulher amargurada. Daquelas pessoas que têm os olhos opacos, sem vida. Nasceu com uma deficiência que a obrigava a caminhar usando os peitos dos pés. Em 2015, durante a grande alagação ocorrida no Acre, a casa onde mora com o marido e o filho foi coberta pelas águas. Na baldeação, foi infectada por leptospirose, cuja bactéria afetou sua perna esquerda. Hoje não anda mais.
Mas Marlene tem os olhos brilhantes. E eles revelam uma alma sonhadora, imbatível. Há oito meses, quando olhou para a própria identidade borrada pela inundação, observou que lhe faltava algo. No espaço da “assinatura do titular” não havia o seu nome, o que lhe constrangia mais que a cadeira de rodas que ganhara no Hospital Santa Juliana, há dois anos.
Como a vida é feita de desafios, Marlene foi à luta mais uma vez. E buscou o nome de próprio punho, a identidade na sua maior essência. Com a ajuda da família, matriculou-se no programa Quero Ler, do governo do Estado, cuja meta é alfabetizar mais de 50 mil pessoas até o final de 2018, erradicando o analfabetismo no Acre ainda na gestão do governador Tião Viana.
Em todo o estado, o programa Quero Ler soma 921 turmas, das quais 493 são na zona urbana e outras 428 na zona rural. Isto resulta num total de 10.450 alunos, sendo 6.140 na cidade e outros 4.310 espalhados em diversas comunidades. Cerca de 500 professores são responsáveis pela alfabetização desses alunos.
Para criar a sala de aula improvisada, os moradores daquele pedacinho do bairro Bahia Velha, na travessa Jenipapo, foram se organizando e o sonho de Marlene já não era só dela. Era também do pedreiro Manoel de Barros, de 48 anos, dono da casa cedida. Era da esposa do pedreiro, Maria Francisca, de 36 anos, e também da filha do casal, a estudante de pedagogia Andressa de Barros, de 22, que auxilia a professora Ana Lúcia Lima Caetano com os 15 estudantes.
Manoel comprou do próprio bolso sete sacas de cimento, uma carrada de areia e algumas dezenas de telhas e construiu um puxadinho onde funciona o espaço alternativo. Ali, ele e a mulher também aprenderam a ler.
Nas noites de aula, acompanhada da cadela Ximbica e do filho Daniel, Marlene do Nascimento esquece as dores terríveis das injeções de benzetacil – tem de tomar uma a cada 21 dias –, e parte sorridente desde a Rua das Mangueiras, acomodada na sua cadeira de rodas, cujos aros já estão quase quadrados de tão carcomidos pelo tempo. Vai mergulhando em seus sonhos. Vai com a certeza da vitória. Ela já disse que continuará os estudos nesta segunda etapa do Quero Ler.
E dá um safanão nas adversidades da vida: “Dificuldade sempre tem na vida, mas tem que ir em frente. No início, eu não queria aceitar meus problemas. Mas as coisas nem sempre são como queremos e isso não pode ser barreira para nossos sonhos. Eu escrevi meu nome. Eu aprendi a ler. E isso já é muita coisa, não tem preço pra mim”.